Poemas para metrônomo e vento estabelece, através de um ritmo cadenciado, uma poética sutil do movimento
Por Fernando Andrade Sempre me interessei muito pelos modos de ser da brisa. É porque só a noto em regiões afastadas do civilizado, como matas, sítios, fazendas e florestas, seu principal meio de existência. Talvez pelo silêncio desses locais, possamos estar atentos ao seu loco de existir, que é o breve som de um rumorejar de algum objeto, como o de folhas que balançam em um ritmo compassado. A brisa pode ser disfarçada com um ritmo musical, só não sei que tipo de instrumento sonoro seria e que cordas perpassariam seu sopro, pois a brisa vem da onde? Do amanhecer? Do entardecer? Por que ela está associada à mudança da luz como o escurecer? Sou neto de fazendeiro e me recordo das brisas poentes em Minas, onde o poente vinha junto com o balanço musical das árvores. Por que perpasso a brisa nesta resenha poética? Para me auxiliar em doces verdes das imagens que são árvores-fruto da nossa imaginação e voam ao sabor do vento. Por quê? Toda canção tem um batimento interno, como o pulsar da vida o tem dentro do peito meu-seu. Dizem que para aprender música é necessário um pouco de matemática, pois são cifras e motes cheios de compassos e pausas. Mas, gente, nunca vi nada tão diferente desta arte dos números e linhas do que a poesia, em seu colocar no meio do pensamento, onde se inicia um poema. A brisa sim, não se sabe de onde vem. Assim como o poema, alguém sabe como se materializa? Quando li os poemas da Roseana Murray, no seu mais novo livro Poemas para metrônomo e vento da editora Penalux, pensei que cada espaço em branco tinha um devir de brisa ali balouçando em fuga ou raiz. Fiquei me perguntando como a poeta inicia esses seus poemas, que começam com uma simples palavra-ideia, e vão se formando com uma certa coesão semântica, muito própria da poeta, em misturas de palavras com leveza e peso dentro de suas possibilidades de sentido e som, encarrilhadas como um trilho de um trem que carregasse um tipo de música – um trem melódico – que fosse intenso de azul. O ritmo de algumas canções parece com o de certas fábulas, que funcionam muito mais pelo formato de se compor dentro de contextos, no caso a página de um livro, do que pelos temas que necessariamente perpassariam. Digo melhor, os enredos só acontecem pelo exímio poder de construir frases melódicas encadeadas de forma simples e extremamente alusiva. A poeta, na maioria dos poemas, repete uma determinada palavra poética mas mantendo a ação em curso nas linhas dos versos. É muito interessante notar que os poemas têm poucos temas e sejam coesos como o vento e a cor azul a nortear uma andança poética pela jornada adentro do livro. Pela forte criatividade de Roseana, em trançar imagens e palavras no intercurso do poema, os temas não se tornam nem monótonos nem repetitivos. Parecem gradações de um mesmo matiz, que se esmiúça, poeticamente, indo ao íntimo ou ao ínfimo das coisas.
O voo além da superfície, em Poemas para metrônomo e vento
Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ) No novo livro de poemas de Roseana Murray, Poemas para metrônomo e vento (Penalux, 2018), temos um universo semântico que dá coerência à obra e à proposta do livro que é medir o tempo pelas cordas da poesia. O metrônomo, instrumento que mede o andamento musical, juntamente com o vento, este elemento sutil da natureza que por vezes nos arrasta com sua fúria sonora, levam a poeta a dialogar com a progressão, com o ritmo das coisas. Palavras como “luz”, “estrelas”, “azul”, “rio”, “asas”, “sol”, “sombra”, “água”, “fio”, “linha”, “voo” tecem uma rede constante em sua poética. É forte a presença da natureza que se mostra como mosaico temporal das mudanças entre o eu e o mundo. Em Murray, temos o tempo da construção, da arquitetura poética, o tempo de fiação e criação da poiesis. Tudo é ritmo nos seus versos musicais. A aproximação entre poesia e música a partir deste elemento que é o ritmo dá o tom maior no livro desta poeta excepcional. Da mesma forma se dá o paralelismo entre natureza e arte/cultura através da música. Os sons da natureza, deste vento que assovia por entre as linhas dos seus poemas revelam as aproximações entre os dons da natureza e o tempo da poesia. O vento é a força da natureza que espalha/expande tudo e espelha o tempo. A cor azul é central no seu livro. O azul indica imaterialidade, um ir além, um transcender a mera forma. Neste sentido, o ar é elemento importante ao se reportar ao mito de Dédalo e seu filho Ícaro. Dédalo era prisioneiro de Minos e para fugir com seu filho da prisão constrói asas, como exímio arquiteto. Só que ele voa numa altura moderada enquanto Ícaro, por sua soberba, vai além do normal, tendo a cera que prendia as suas asas derretidas pelo sol, levando-o à morte. No poema “O rio invisível”, Roseana Murray tem uma conversa intertextual com este mito. Vejamos: “A música do rio/invisível,/que canta/conduzindo/os navegantes,/os sem rumo,/os perdidos,/os maltrapilhos//Há que ouvir/essa voz distante,/para sair do labirinto.//Há que buscar/as setas/que apontam/o nome:/aquele escrito/com sol.//Só então/a alma pode voar e levar/o corpo/e mesmo que a luz/desfaça suas asas,/será possível enxergar/na escuridão”. Apesar do voo deste imaginário que vai além da forma, Murray tem uma postura de enxergar além do mero cotidiano, com uma poesia que revela o sublime através das asas das palavras, como “sementes aladas”, sua poética inaugura conceitos e chaves para se entender a vida e ultrapassar a mesmice cotidiana. No poema que abre o livro, temos o simbolismo das asas: “Se não temos asas,/temos palavras,/para arrumar o caos/em camadas de azul/e desejos”. Sendo a cor mais sutil da chama, o azul nos apresenta a cor do infinito, àquela observação que ultrapassa o meramente ótico para se fazer o sonho lírico. Algo que se expande de sua ambiência de ser simplesmente visão para se fincar nas entrelinhas do olhar, os pontos vazios que dialogam com o caráter fantasmático do poético que não se quer uma convenção. Em “Os mortos”, temos: “Os mortos/se alimentam/da nossa memória,/sua comida/é o fiar contínuo/dos nossos pensamentos”. Este caráter espectral do poético lança uma rede invisível tecida pela intangibilidade das coisas, paradoxalmente. Murray nos fala dos abismos que as palavras contêm, os seus versos são permeados pelo silêncio da escuta, aquele silenciar que é o tempo de maturação da poesia, o tempo também de degustação do leitor que vai também além do que é visível aos olhos. No livro exemplar sobre os gêneros literários, Conceitos fundamentais da poética, de Emil Staiger, encontramos a recordação lírica, que não é apenas o ingressar do mundo no sujeito. É muito mais do que isso. É o “um-no-outro”, “de modo que se poderia dizer indiferentemente: o poeta recorda a natureza, ou a natureza recorda o poeta”. Neste sentido há uma fusão entre os dois planos, fazendo do sujeito um objeto e deste um avizinhar-se do humano. Vejamos o belíssimo poema “Caminhar sobre as águas”: “Levo o mar/dentro dos olhos/como quem leva/uma fruta na bolsa/variações sobre/todos os tons/do azul.”. Dessa forma, encontramos nos poemas de Murray, uma música na natureza, uma certa culturalização do ambiente, em que noções abstratas como o tempo dançam nos mares da realidade natural. E também há uma certa naturalização da arte, percebendo-se entre ambas, cultura e natureza, os intercâmbios possíveis. Assim temos o voo do poético nesta obra fantástica de Roseana: “nessa cor, nessa música líquida”. Além da intertextualidade que se mostra em seus versos, temos a metalinguagem mesclada com ela num mesmo poema. Vejamos o diálogo com João Cabral de Melo Neto, dando novas asas à poesia dele: “Um verso simples,/ sozinho,/não tece a manhã:/é preciso um galo/e um sol,/nas mãos um sonho/ainda sujo de estrelas,/ainda sujo de infinito./Um verso precisa/de outro verso,/para que seu tecido/vire barco.” É preciso que a intertextualidade e a metalinguagem estejam de mãos dadas para que os efeitos e desdobramentos do poético se enalteçam. E isso Roseana Murray faz de forma maravilhosa, dando tons vibrantes e particulares para outros autores cotejados. O fascínio que Murray tem pelas palavras necessárias e essenciais para a construção de sua rica urdidura lírica faz de seu livro algo luminoso para a verdadeira poesia que deve se pautar pelo mais importante e não se perder em vias de mão única, mas pluralizar os códigos linguísticos por um assunto temático único que se desdobra de forma variada e crescente em sua obra admirável pela sua força poética. Portanto, a sua poesia revela as sutilezas do azul, que ultrapassa o ordinário para se fazer o sublime regado de silêncio e vazio. Sua obra transcende o convencional ao nos apresentar as quebras das diferenças e dicotomias como o intercâmbio entre o natural e o cultural, nos levando a uma altura que vai além das estrelas. Tendo uma poesia original, lírica, bela e essencial, suas vozes artísticas costuram um tecido multifacetado utilizando-se para isso de uma semântica própria que repete certas palavras que
Krishnamurti Goés dos Anjos
Sabemos que o metrônomo é um instrumento que marca o ritmo das músicas. O seu funcionamento é construído para dar suporte a mensuração da passagem do tempo, permite que a música flua com maior organização e expressividade e assim, tempo e música se misturam metaforicamente a tecer a poética de Roseana que se pergunta sobre essa costura de tênues fios: “A linha” “De onde vem / essa linha fina / de costurar poesia? / De qual oriente? / De qual mil e uma / noites, / de qual dia? / De onde a seda / dessa linha / que borda, / que transborda / do papel / para o mar / e o céu? / De que estrela / desconhecida, / de que bicho / da seda?” Abordando temas densos como a solidão, a morte, a angústia, a memória e as perdas, os poemas se sustentam em refinado jogo de linguagem que transparece apenas para revelar o que é simples e delicado no cotidiano que está em todas as coisas, sobretudo no silêncio. Este, visto não somente como necessário à apreensão das verdades da vida, mas, por outro lado, quando precisa ser quebrado. Um ouvido no silêncio e outro no verbo portanto. “Noz” “E se o teu silêncio / se partisse feito uma noz, / um cálice / e se fizesse música, / e rumor de um rio, / de um riso, / de passos sobre folhas / secas, / de fio de luz / esgarçando a noite, / ou chuva. / E se o teu silêncio / se abrisse / e desvendasse / uma escrita tão antiga, / perdida?” A autora segue despertando verdadeiras epifanias, veja-se a profundidade existencial de um poema como: “O que te espera” “Ancorado no cais / da palavra / um barco te espera, / um rio te espera, / no azul da montanha, / um oásis te espera / na orla do deserto, / uma miragem / te espera / na superfície da vigília, / a vida te espera, / o assombro, / o espanto” E sempre um retorno ao fundamental da vida. “As mãos” nos faz relembrar o pensamento de Octavio Paz. “As palavras chegam e se juntam sem que ninguém as chame; e essas reuniões e separações […] são regidas por uma ordem de afinidades e repulsões. As palavras se juntam e se separam atendendo a certos princípios rítmicos”. “As mãos querem / música / quando abrem / a caixa da vida / para que a noite / escreva estrelas / cadentes / e o dia o seu trigo, / seus girassóis. / As mãos querem / a água do poço / das palavras / que voam”. Em outro poema, “Pasto”, a poeta cria por analogia. Seu modelo é o ritmo que move o poema, palavras em estado de abundância verbal, corrente rítmica que se manifesta em imagens e não em conceitos. “Em meu pasto / de palavras, / por debaixo / da terra, / onde correm / profundos / os veios de água, / os veios do que / pode e não pode / ser dito, / onde uma luz / às vezes sombra / acende a música / oculta dos sentidos, / cavalos se aquietam / diante do abismo, / onde caem as horas” E mais uma vez, e aprofundando o que já fora dito, o poema “O rio invisível” revela o talento da autora que se volta para perceber a poesia contida desde um simples rio, ao sol. “A musica do rio / invisível, / que canta / conduzindo / os navegantes, / os sem rumo, / os perdidos, / os maltrapilhos. / Há que ouvir / essa voz distante, / para sair / do labirinto. / Há que buscar / as setas / que apontam / o nome: / aquele escrito / com o sol. / Só então / a alma pode / voar e levar / o corpo / e mesmo que a luz / desfaça suas asas, / será possível enxergar / na escuridão Uma obra como “Poemas para metrônomo e vento” ajuda-nos a ascender a novas fases de consciência. Inebria-nos com o cântico das grandes leis da vida, nos faz voar, leve, rápido, distilando intelectualidade mas, num sentido de orientação. Desperta afinal, ressonâncias noutras almas e isso já é muito. O mundo hoje, mais do que nunca tem necessidade destas revelações íntimas. Precisa destas afirmações de espiritualidade, necessita de quem grite, em tempos de materialismo e egoísmo desenfreados, a grande palavra da alma; de quem dê, em tempos de apatia e indiferença, exemplo de fé; de quem repita, as grandes verdades esquecidas. Confiram detidamente isto, e outras coisas bem próximas, em poemas como: “Geografia”, “Para caber no corpo”, “Nas paredes”, “A chave”, “Voo”, “Viajante” e finalmente “Vazio”, que transcrevemos: “Antes quase no começo / do mundo, / quando as estrelas / diziam o caminho / e os pássaros eram / a fronteira entre / o céu e a terra, / as palavras ainda / buscavam a sua música / e os pés deixavam / a marca indelével / dos que passavam / em busca do que não / tinha nome. / Hoje, o vazio do que / está sempre abarrotado / de tudo / é o abismo onde caímos / todos os dias. / As palavras já não / se entrelaçam, / são ruídos roucos / e inúteis. / Há que reinventar / o tempo. / Largo e liso / feito um lago. / Espelho do que / um dia fomos”. Livro: Poemas para metrônomo e vento – Poesias de Roseana Murray Editora Penalux, Guaratinguetá SP, 2018, 110 p. ISBN: 978-85-5833-323-8
Sobra Silêncio e Cordas (E Book)
Querida Roseana, entrar en tu página es atravesar un mar de belleza infinita, de palabrs que flotan y trazan las escalas de los sueños y hacen posible todo aquello que hemos deseado con el corazón. Qué felicidad tan grande sentir tu voz tan cerca de la tierra. Y tus Variaciones sobre Silencio y Cuerdas dibujan un tiempo feliz de escuchas y esperas hasta que la musica, el tempo de la espera se transforma en epifanía del sentimiento. Querida Roseana, entrar na tua página é atravessar um mar de beleza infinita, de palavras que flutuam e traçam as escalas dos sonhos e tornam possível tudo aquilo que desejamos com o coração. Que felicidade tão grande sentir a tua voz tão perto da terra. E as tuas Variações sobre Silencio e Cordas desenham um tempo feliz de escutas e esperas, até que a música, o tempo da espera se transformem em epifânia do sentimento. Francisco Jarauta, filósofo espanhol
Delírios
Acabei de fazer a leitura do e-book “Delírios”, da poeta Roseana Murray. Ler livros nesse suporte é, para mim, algo novo, tão apegado que sou ao objeto de papel, cheio de folhas, nas quais posso fazer minhas anotações com o lápis que sempre me acompanha. Mas confesso que gostei muito da experiência. O primor das ilustrações de Evelyn Klingerman auxilia bastante, mas, é claro, que o que sobressai é o destro dessa escritora multifacetada que é a Roseana. “Delírios” é um título bem apropriado para o conjunto de 33 poemas, que apresenta leveza e profundidade ao retratar temas como morte e vida, distância e tempo, signo e linguagem. Tudo isso perpassado por um vento que nos leva pela tarde e deixa um gesto de saudade. Roseana Murray é da família poética de Cecília Meireles – há na sua poesia o sopro lírico indispensável às epifanias. No texto de apresentação, acerta em cheio o poeta Salgado Maranhão, quando afirma que “Ao término da leitura, nos apossa a sensação de não ter chegado ao fim, como se fora um convite ao recomeço”. Fica aqui o meu convite a todos os amigos que apreciam a boa poesia, para que dêem continuidade a esse ciclo de leitura, prenhe de recomeços e de novidades. Basta clicar no e-book e adentrar nos delírios da loba e aprender uma lição de dança desenhada pela linguagem poética. José Inácio Vieira de Melo OBS: O E-BOOK É GRATUITO! Visite a página da escritora: Roseana Murray E-books
Felipe Lacerda de Melo Cruz
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José Sarney
Abecedário Poético de Frutas O Abecedário Poético de Frutas é uma delícia que se transfere do prazer físico para o espiritual. Cada fruta é ressuscitada em nosso sabor, com cheiro de oriente do damasco, perfume da vergamota que deixa na boca uma saudade, forma de estrela de carambola, gosto escondido da noz, colorido dourado e branco da banana, amarelo doce da manga, textura de tecido de um tempo antigofigo, consistência molhada do caqui. As árvores dão sombra,aninham os sonhos,formam um túnel verde. As frutas reencarnam o sol, escorrem sol, inundam a boca de felicidade, incendeiam de doçura, percorrem ruelas, iluminam o céu da boca, brilham feito nascente, transformam o dia em sol e festa, no milagre da poesia. A riqueza das imagens, dos versos, e a música dos poemas mostram que a poeta tem o domínio completo de seu ofício. Não é poesia infantil, é, simplesmente, poesia. Poesia simples e direta, portanto mais perfeita, onde podemos mergulhar e nos banhar, redescobertos no tempo em que aprendíamos as frutas. Tudo isso Roseana Murray conseguiu transfigurar nas palavras de uma grande poeta no seu Abecedário Poético de Frutas, em que elas são mitológicas flores do jardim das musas. José Sarney
Elisa Lucinda
Realmente o seu livro o Diário da montanha confirma a irmandade que há em nossos olhares. Fiquei impressionada, Roseana, o livro é lindo, tem imagens maravilhosas e eu vou buscar entre os meus poemas os que são irmãos dos seus. Fiquei muito emocionada,me senti na montanha, na casa, na natureza, prazerosa viajante no comboio de palavras lindas que o seu livro é. Incrível. Há uma tradução tão precisa, parece uma fotografia com cheiro, cor e forma. Obrigada. Achei o abecedário também uma delícia e um livro necessário para as crianças. Mas este Diário da montanha… sem contar a beleza da capa dura, a guarda vermelha, um escândalo! Beijos, Elisa. Elisa Lucinda
Luana Raquel da Silva – Universidade Federal de Rondônia – Campus Vilhena
Receita de espantar a tristeza (Roseana Murray) Faça uma careta e mande a tristeza pra longe pro outro lado do mar ou da rua vá para o meio da rua e plante bananeira faça alguma besteira depois estique os braços apanhe a primeira estrela e procure o melhor amigo para um longo e apertado abraço. O poema proporciona uma imagem de movimento: parece pedir certas ações internas e externas do leitor: as primeiras, interiores, como base para a realização das segundas, que por sua vez, são exteriores. Desenha-se um estado de humor que vai se alterando, ou que deve ser alterado, conforme as ações que devem ser feitas, a partir de um “passo-a-passo” para mandar a tristeza embora. O conjunto de verbos no modo imperativo faça, mande, vá, plante, estique, apanhe, procure, parece marcar a função conativa da linguagem eaponta uma série de ordens ou conselhos, traço linguístico comum em receitas (textos instrucionais). As estrofes – versificadas sem pontuação – se posicionam obedecendo à ideia de gradação, apresentando ideias de ações internas (mandar a tristeza embora) e externas (ir para o meio da rua e abraçar um amigo). Pode-se pensar que elas funcionam como grandes (or)ações principais, responsáveis por gerar o que vem adiante, não permitindo que as ações sejam independentes ou que sejam trocadas de lugar: para a receita surtir efeito, as ideias (estrofes) devem obedecer à regra de estarem umas após as outras. Embora haja, explicitamente, apenas um advérbio de tempo no poema (depois, no primeiro verso da terceira estrofe), é perceptível a presença implícita de outros, sublinhando ainda mais a sensação de ordem, de gradação das ações, como sugerido a seguir: Primeiro¹, faça uma careta depois, mande a tristeza pra longe pro outro lado do mar ou da lua agora, vá para o meio da rua e plante bananeira, faça alguma besteira Depois², estique os braços e apanhe a primeira estrela Por fim, procure o melhor amigo para um longo e apertado abraço. A noção de movimento em “Receita de espantar a tristeza” é formada nítida e gradativamente; contudo, não apenas a partir dos verbos ativos, mas através de todo o conjunto de escolhas estilísticas. Para se contrapor à organização gradativa do poema, analisa-se agora, por último, o título (que é o começo): ele aparece como índice de um “modo de fazer” que independeria de ações subjetivas, quando, na realidade, parece desafiar quem recebe a “receita”, convidando o receptor a ser o ingrediente principal. Movimentar-se dentro de si, no mundo e para o outro é, no fim, a receita de espantar a tristeza. ¹ Os advérbios negritados e as vírgulas são sugestões minhas ² Tal qual o original Universidade Federal de Rondônia Luana Raquel da Silva Análise estilística de “Receita de espantar a tristeza”, de Roseana Murray
Aline – Universidade Federal de Rondônia – Campus Vilhena
Beija-flor Beija-flor pequenininho que beija a flor com carinho, me dá um pouco de amor, que hoje estou tão sozinho… Beija-flor pequenininho, é certo que não sou flor, mas eu quero um beijinho, que hoje estou tão sozinho… (Roseana Murray, versão obtida no blog da autora: http://blogdaroseana.blogspot.com.br) Beija-flor, de Roseana Murray, é uma composição curta, constituída por duas quadrinhas heptassílabas cujo conteúdo ostensivo, de extrema simplicidade, não oferece qualquer dificuldade de compreensão para o leitor: o poema é escrito sob a forma de um apelo ou súplica – o pedido de um ‘beijinho’, de um eu-lírico que fala na primeira pessoa, dirigido a um ‘beija-flor pequenininho’. Não obstante essa aludida simplicidade, merecem nota alguns procedimentos utilizados pela autora na fatura do poema. O verso de sete sílabas, utilizado em Beija-flor, é o verso popular por excelência, de grande variação rítmica e com regras de acentuação, em princípio, mais fáceis de seguir, utilizado na literatura de cordel e nas cantigas populares. Esse esquema rítmico particular, aliado à repetição, na segunda estrofe, do primeiro e último versos da primeira estrofe faz lembrar o rondó, forma fixa de composição musical. O esquema rimático AABA //ABAA reforça também essa natureza musical do poema – note-se que a rima consiste quase exclusivamente na reprodução do / ɲƱ/ no final de seis dos oito versos que compõem as duas quadras, repetição que evoca a regularidade típica da canção popular. O léxico e a sintaxe de Beija-flor são também simples, organizados numa ordem expositiva clara e direta, numa quase ausência de linguagem figurada, sendo as palavras utilizadas, em geral, no seu sentido mais próprio. O verso de abertura do poema é marcado por um enjambement com o segundo verso, cuja vírgula final marca sintaticamente a presença de um vocativo, correspondendo, no plano semântico, a uma apóstrofe ou invocação da entidade do ‘beija-flor’. Esse enjambement é único no poema e contrasta com os demais versos, que constituem unidades sintáticas completas. Notemos que a presença da vírgula apenas no final do segundo verso (‘Beija-flor pequeninho/que beija a flor com carinho,’) atribui um carácter restritivo à ideia de ‘beijar a flor’, em contraste com a possibilidade de uma oração explicativa, o que aconteceria caso a vírgula fosse deslocada para o final do primeiro verso (‘Beija-flor pequeninho, / que beija a flor com carinho,’). O ‘beija-flor’, entidade evocada, adquire aqui, então, especificidade: é ‘pequenininho’ e, simultaneamente, é o que ‘beija a flor com carinho’, deixando de ser qualquer para ser aquele. Outro aspecto sintático que merece nota ocorre no terceiro verso. Nele, a anteposição do pronome reflexivo ‘me’, sintaticamente objeto indireto da frase, ao verbo dar, no presente no imperativo, é marca da oralidade e, embora não chegue a constituir um desvio significativo, é de assinalar a sua harmonia com o carácter popular do poema a que aludimos no início. A pontuação, por sua vez, é marcada por um uso predominante da vírgula, que aparece em cinco versos, e pela ausência de ponto final, substituído por reticências. Entendemos aqui o uso da vírgula, o sinal de pontuação mais afeito à oralidade e ao seu caráter continuum, como sendo outro aspecto formal em consonância com plano de conteúdo, que, não nos esqueçamos, pode ser compreendido como uma espécie de ‘diálogo’ ou interpelação direta da entidade do beija-flor. Já a utilização das reticências pode ser lida como uma pausa voluntária na ‘fala’ do eu-lírico, sugerindo uma dificuldade em verbalizar a sua solidão (‘que hoje estou tão sozinho…’), comprovada pela mudança brusca de assunto que ocorre no verso seguinte. A sonoridade expressiva lograda pela aliteração da nasal palatal (‘pequenininho’, ‘carinho’, ‘sozinho’, ‘beijinho’) sublinha o carácter motivado da seleção lexical: é, pois, precisamente essa aliteração que ajuda a construir um tom tristonho, disfórico e monótono, em harmonia com a súplica e a expressa solidão que ocorrem do plano de conteúdo. Assim, entendemos a evocação da presença do beija-flor por parte do eu-lírico: estando triste, sozinho e como estratégia de solução para esse estado, evoca o pássaro associado ao amor romântico e à claridade e ao qual se atribuem poderes de cura e de atração da felicidade. Chama-nos a atenção, por último, o carácter lúdico que, ainda que discreto, é passível de ser identificado na utilização que o poema faz de dois vocábulos específicos. Note-se que ‘beija’, justaposto a flor, em ‘beija-flor’, é um substantivo; no segundo verso, o mesmo vocábulo transforma-se em verbo transitivo direto, cujo complemento é ‘flor’. Semelhante situação ocorre com o vocábulo ‘flor’ – notemos que, no primeiro e segundo versos, ‘flor’ é substantivo; já no sexto verso, o mesmo vocábulo transforma-se em adjetivo, numa construção marcada pela ausência de um previsível artigo indefinível que o substantivaria (‘é certo que não sou flor’). Estes ‘jogos morfológicos’ fazem também de Beija-flor um exercício lúdico de exploração da linguagem. Aline Universidade Federal de Rondônia – Campus Vilhena