Clube de Leitura da Casa Amarela

Hoje, dia 15/10, Dia do Professor/a, foi o nosso encontro do Clube de Leitura da Casa Amarela, para conversaemos sobre o livro Hibisco Roxo da Chimamanda Adichie. Começamos falando, claro, da colonização europeia e da destruição das religiões puramente africanas. O Cristianismo entrou convertendo para salvar as almas e o islamismo também (li o livro Ségou, de Maryse Condé, que conta a conversão forçada). Já a Africa foi dividida como um botim e países foram criados juntando etnias inimigas. Hibisco Roxo, que se passa na Nigéria, fala de uma família católica riquíssima, com um pai (criado pelos missionários) fanático e cruel, para quem tudo é pecado, tudo é demoníaco e o inferno é ameaça constante, é o tirano e torturador de sua mulher e dois filhos. É tão fanático que renega o próprio pai por não querer ser convertido. Sendo muito rico, deixa o pai na miséria por não aceitar se converter. As crianças quase não podem ver o avô, pois é perigoso estar sob o mesmo teto de um pagão. O contraponto é o outro lado da família: a irmã do pai, Professora universitária, também católica, mas de um cristianismo amoroso, ela toda acolhimento e amor. A tessitura do livro é belíssima. A casa da tia pobre e livre, com seus filhos já pensadores críticos, é a saída do inferno para o paraíso, e os primos oprimidos conseguem encontrar a alegria e o riso e a voz. Não vou contar o livro todo, claro, mas dizer que nunca, nesses 12 anos de encontros, nunca a discussão foi tão acalorada e intensa, ninguém conseguindo esperar o outro acabar a sua fala, todos falando ao mesmo tempo, brigando para ser ouvido, tive que tentar algum silêncio para que pudéssemos escutar o outro, tocava até um sininho, mas parecia que estávamos incendiados pelo livro. Uma leitora, Gilcilene Cardoso , disse uma coisa tão linda, que jamais esquecerei: que ficou muito emocionada com as palavras em igbo que aparecem no livro, as comidas em igbo. Gil diz não saber de que lugar seus antepassados vieram e nunca saberá, mas quando ela leu “arroz jollof”, pensou que alguém da sua família, lá longe no tempo, numa aldeia, comia talvez arroz jollof. Chimamanda é uma escritora impressionante. Como temos tantas Professoras no Clube, Hibisco Roxo foi o mais belo presente no dia de hoje.

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Desde a década de 70, eu me sentava num cepo em cima do fogão de lenha na casa da D.Maria e Seu Elói, na roça, em Visconde de Mauá, para ouvir histórias. Sentado do outro lado da cozinha grande, num banco encostado na janela, Seu Elói picava o fumo de rolo, enrolava lentamente um cigarro de palha e falava sem começo-meio-fim, um rio sinuoso de palavras que ia me levando em suas águas, numa linguagem toda própria daquele lugar na montanha, que viveu isolado por tantos e tantos anos e só a partir dos 70 começou a se abrir. Assim, quando li pela primeira vez Grande Sertão: Veredas, pude entrar, porque já estava acostumada com as narrativas enoveladas do S.Elói, na beira do fogo. Foi de grande ajuda. No encontro do Clube de Leitura da Casa Amarela, tendo pouco tempo para conversar sobre um dos livros mais impressionantes da nossa literatura, o único jeito era fazer uma festa, uma celebração. E foi assim. Samuel, nosso anjo jardineiro, logo acendeu o fogo do nosso fogão de lenha e arrumou a varanda. As pessoas foram chegando com vinhos, presentes e a alegria dos dias de festa. Juan Arias abriu o encontro com a leitura de um artigo publicado recentemente no El País sobre a força da poesia nos momentos tenebrosos. Cristiano Mota Mendes, o maior dos apaixonados pelo livro que já conheci, foi o leitor guia da discussão, com trechos escolhidos. Cada um apanha para si o que desejar deste livro absurdamente belo. Alguns colocaram o foco nos personagens, outros nas guerras, outros no amor de Riobaldo e Diadorim. Grande Sertão, ao longo dos anos, me ensinou a alegria nos momentos difíceis. É a lição mais maravilhosa. Agora, enquanto atravessamos o Liso do Sussuarão, precisamos manter uma certa alegria para não nos perdemos nos nevoeiros da tristeza. Neste momento temos um Hermógenes no comando. Neste momento o diabo existe no meio do redemoinho. Mas o pacto existiu, será? Houve música. Ronaldo Mota cantou a Canção de Siruiz. Teve um almoço maravilhoso preparado pela Vanda. Fiz pães. Lilliam, a filha da Vanda fez um bolo de aniversário para os que fizeram anos até este dia, nos meses de julho e agosto. Tivemos crianças no encontro. O amor era a luz da casa. Cantamos. O mar cantou. E recomeçaremos a ler Grande Sertão: Veredas outra vez. Uma e outra vez. Porque era uma vez um Riobaldo, um Diadorim…

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No dia 14 de maio de 2022, o Clube de Leitura da Casa Amarela se reuniu pela primeira vez presencialmente, desde o começo da pandemia. Escolhi dois livros muito especiais para o reencontro presencial: O Voo da Abelha de Cristiano Mota Mendes, ed.Viegas, de São Luis do Maranhão. O livro é um jorro poético maravilhoso , um canto para a noite, e desinventa na sua estrutura, as fronteiras de gênero literário. Não é um conto, não é um poema, não é uma crônica, é uma torrente de fragmentos que leva o leitor em sua enxurrada belíssima. Os bordados de Ângela Dumont fazem a mais perfeita moldura. Os Contos de Cães e Maus Lobos, ed. Biblioteca Azul, também nos carregam em sua cachoeira de beleza, são delicadíssimos e densos, são fios de seda. Sendo assim, nos enredamos numa teia mágica. A alegria do reencontro foi indescritível. Como crianças que precisam sapatear e dar cambalhotas quando a felicidade é muita, cantamos, dançamos, rimos, choramos. Vanda, meu anjo de todas as horas e sua filha Liliam na cozinha, iam e vinham como abelhas fabricando mel. Samuel, nosso jardineiro, junto comigo nas arrumações, assistiu, como sempre, toda a discussão dos livros. Não deixei de fora os que não puderam vir pela distância: gente de Uberaba, Goiânia, Belo Horizonte, Tel Aviv, Visconde de Mauá, tiveram comigo um encontro on line pelo zap. Estandarte produzido e bordado pela nossa leitora Janir. Foto de todos na montagem do nosso leitor Jiddu.

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Do Amor e outros Demônios, o livro discutido no dia 13/03/2022, no Clube de Leitura da Casa Amarela, foi um mergulho nas águas maravilhosas da escrita de García Marquez, Gabo para nós, seus leitores apaixonados. Dando um salto do presente, para 200 anos atrás, a partir de uma reportagem para o jornal onde trabalhava, nos leva para o cerne do amor e do horror, numa história que ouviu da sua avó. Cada personagem jamais será esquecido. A menina de 12 anos, Sierva Maria, que sofre os piores horrores no Convento onde está aprisionada levada pelo pai, aprisionada pela Igreja e Inquisição, por causa da mordida de um cão raivoso, que, por ter sido criada na Senzala da propriedade, (seus pais a ignoravam) falava línguas africanas, por tudo isso, a matemática da Igreja fazia dela uma possuída. Bem sabemos o que a Inquisição fazia com os possuídos. Com as mulheres. Mas Gabo constrói uma potente história de amor. Nesse livro a atmosfera é de medo, loucura, decadência. Tudo se espessa e morre, só o amor se salva. A cada frase as imagens inesperadas e feéricas, maravilhosas, nos agarram e nos deixam quase sem ar. O romance trabalha com uma potência simbólica imensa e ficamos impregnados de algo que não sabemos definir. Neste nosso tempo de intolerância e Guerra, onde a ignorância dos fanáticos vai tecendo sofrimento e morte, Do Amor e outros Demônios nos alerta para a extensão do mal e nos deixa na frente do espelho de nossos próprios Demônios. Mas a teia do amor nunca se extingue. E foi maravilhosa a leitura de cada um, que ao se costurar com a do outro, faz a mais bela tessitura trazendo muitos pontos de vista. A leitura solitária e depois a discussão coletiva, mesmo online, é um deleite. Roseana Murray

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O Passeador de Luciana Hidalgo foi o livro lido e discutido pelo Clube de Leitura da Casa Amarela. O livro apaixona do título até a última linha. Afonso Lima Barreto nos leva com ele pelo Rio de Janeiro do comecinho do século XX, em suas andanças pelo centro da cidade que começa a ser demolido para ser reconstruído nos moldes de Paris. Os tambores das Senzalas ainda ecoam. O apartheid social é nítido. A Elite fala francês. Passeamos com ele em sua dor. Entramos em bondes, sebos, livrarias da moda, Confeitaria Colombo, becos, botequins…vamos juntos até a sua casa no subúrbio. Vivemos com ele seu progressivo alcoolismo e o tédio do trabalho na repartição, as humilhações. O medo da loucura do pai estar em seu sangue. Vivemos com ele o que não sabemos se é verdade ou delírio, na tênue linha que divide o real da loucura. Com seus pés andamos noite adentro e quando terminamos de ler, a sua dor é nossa.

Clube de Leitura da Casa Amarela em 05/12/2021

Carta ao Pai, de Franz Kafka, foi o livro escolhido para nosso encontro ainda virtual de dezembro. Ler o livro é uma maneira magnífica de nos aproximarmos ou reaproximarmos da obra de Kafka por dentro. Ele abre as suas entranhas nessa carta absurdamente densa, bela, terrivel, triste,que nunca foi entregue. Não é fácil. Somos sacudidos de um lado para outro diante do despotismo do pai como se estivéssemos em mar bravio, a deriva. É um livro que ao falar do autoritarismo do pai diante da criança, ao falar do seu poder, está falando de todas as tiranias, está faĺando de milhões de infâncias. A criança sensível, desamparada que foi Kafka, aterrorizada, envergonhada, reverbera não só na sua vida, mas em toda a sua obra. A partir do pai ele pode escrever o absurdo que é o mundo e com sua escrita límpida ele nos desvela as horríveis engrenagens do poder e da burocracia que ignora o humano. Os relatos dos leitores foram magníficos. Reflexões intensas sobre amor e ódio, sobre o Mal, a maneira com que lidamos com pais e filhos. Alguns escreveram cartas aos próprios pais para falar de Hermann Kafka. Hoje nos emocionamos muito. Kafka soube como ninguém nos colocar em lugares irrespiráveis. Viajar com ele é uma difícil aventura.

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Às vezes um livro inacreditavelmente belo, de repente, chega em nossas mãos. O encontro do Clube de Leitura da Casa Amarela com O Som do Rugido da Onça de Micheliny Verunschk quase não pode ser contado em língua de gente. Micheliny, como historiadora e poeta, nos leva até o princípio do mundo, nas tradições indígenas, nos leva até a Munique do Século XIX, a bordo das duas crianças que sobreviveram a una viagem terrível, embarcadas como coisas por dois cientistas, junto com espécimes da fauna e flora da Floresta Amazônica, para serem exibidos diante dos europeus. Micheliny sabe que o tempo é um contínuo e nos traz de volta até hoje, dentro do corpo e da mente de Josefa, que num susto, ao ver a imagem das duas crianças, uma Juri e a outra Miranha, numa exposição, se desloca até as suas raízes profundas. Vai buscar a sua onça. Ouve o seu rugido atravessando o tempo. O livro levanta um leque impressionante de questões e ao mesmo tempo somos mergulhados numa escrita que é de beleza e sonho, totalmente onírica, testemunha dos milagres que se pode fazer com a linguagem. E então entendemos a língua da onça, a língua dos rios. Micheliny consegue traduzir sensações e miragens, com tanta força, que é como se viajássemos nas várias camadas de tecido do tempo, seda-veludo-algodão-dor-luz e sangue. Nesse encontro virtual, sem imagem, apenas as vozes de cada um, como um sussurro, atravessava o espaço e nos contava como cada leitor viveu a experiência deste livro fascinante. A autora esteve presente. Participou do encontro. Houve música, memórias, num ritual que se repete a cada dois meses em torno de um livro. A literatura como banquete. E levaremos para sempre o som deste rugido da onça, essa força necessária para vivermos o presente. Roseana Murray

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Como dar conta de um livro tão belo, tão monumental, como “Com a Vida pela Frente”, de Émile Ajar/Romain Gary? Grandes livros chegaram nas minhas mãos por um sopro de magia, sem buscá-los. Foi este o caso. Acho que foi na década de 70, ou começo dos 80, que uma amiga muito amada, Monica Botkay, me emprestou o pequeno volume de La Vie Devant Soi. Eu me apaixonei perdidamente pelo livro, de paixão fulminante. Mas tinha que devolvê-lo. Nesta época não podia me dar de presente um livro importado e não havia em português. Mas nunca o esqueci. Momo, Mme Rosa e todos os maravilhosos personagens me habitavam. Em 1994, fui a Paris, fiquei hospedada na casa de uns amigos que não conheciam o livro. Cheguei no final da tarde e no dia seguinte de manhã fui atrás do livro. Foi o primeiro que vi, na beira do Sena, me esperando. Foi tão belo reencontrar todo mundo! Meus amigos leram e passávamos muito tempo discutindo o livro. Uma vez, Bartolomeu Campos Queiroz falou dele num encontro para professores. Ouvi-lo falar de Momo e Mme Rosa foi como se um raio me atingisse. Ninguém que eu conhecesse conhecia o livro! Quando criei o Clube de Leitura da Casa Amarela,em 2010, achei a tradução em português, li e não gostei. Mas agora, a edição da Todavia tem uma tradução perfeita e finalmente pudemos nos encontrar em volta de um dos livros que mais amei e amo na vida. Pelos olhos e pela fala de Momo, entramos em seu submundo de prostitutas, cafetões, travestis, africanos, muçulmanos, e uma velha judia, Mme Rosa, ex puta, sobrevivente de Aushwitz, com um retrato de Hitler debaixo da cama, para se lembrar que sempre pode ser pior. Entramos num apartamento em Belleville, Paris, lá em cima, no sexto andar de um prédio de periferia, sem elevador, que abriga uma infinidade de gente de todos os cantos e até um Senhor francês! O apartamento da velha judia é um lar clandestino para filhos de prostitutas mediante pagamento, pois nessa época era proibido as mães que exerciam a profissão criarem seus filhos. Mas ela tinha papéis falsos para todos e um policial que ela criou que a protegia. Por esse lado não havia problema. A história de amor de Mme Rosa, velha judia e Momo, menino muçulmano, talvez seja a mais bela que já tenha lido na vida. Para mim é um livro único. Absurdamente belo, triste, cômico. O Clube de Leitura da Casa Amarela amou e passamos quatro horas dicutindo online e nos emocionando.

Clube da Casa Amarela

O autismo, para quem nada conhece do tema, é um enigma. Como acordes musicais, o espectro autista varia em intensidade. O autista, para nós, os leigos, é um país desconhecido. Entretanto, pais e mães e irmãos e professoras e professoras, precisam lidar cotidianamente com pessoas que possuem outra maneira de ser. E eis que de repente me chegou nas mãos um livro magnífico, Arthur, Um Autista No Século XIX, de Maria Cristina Kupfer, psicanalista, grande conhecedora do tema, na história, na teoria e na clínica. Mas a romancista aqui é soberana. Usa seu conhecimento como arcabouço para o romance que faz estremecer nossos pilares. Poderíamos chorar rios de surpresa e emoção. Maria Cristina, já na primeira frase, nos leva com delicadeza para o fim do século XIX. No dia 3 de outubro de 1891, entramos em Marguerite, uma aristocrata, mulher livre, dona de uma grande propriedade que herdou e admistra sozinha, função absolutamente masculina na época. ” Hoje alcei voo com o sol. Não imaginava poder realizar algum dia o que os monges do século XIV afirmavam ser a melhor maneira de escrever: acompanhando o nascimento do sol.” Essa primeira luz, que lhe trará a escrita em forma de diário, é a metáfora do desconhecido que se ilumina. Arthur entrará na vida desta mulher singular para a sua época e então terá começo a aventura mais extraordinária. Os personagens são potentes, assim como as situações vividas por Arthur. O silêncio do menino também é personagem. O silêncio é personagem e é a música que percorre o belíssimo romance. O Clube de Leitura da Casa Amarela teve no dia 26/06/2022 um dos seus encontros mais impactantes. Mesmo sem fazer parte do espectro, nos foi oferecido um espelho para um grande mergulho dentro das nossas águas.