As brasas no Clube de Leitura da Casa Amarela

Com a falta,abonada por todos, da nossa querida Roseana , por motivo dos mais felizes – o nascimento de sua neta Gabriela, de seu filho André com Dani Keiko – realizamos sábado passado nossa reunião literária sobre o livro As Brasas do húngaro SándorMárai.. (Benvinda, Gabriela! Saúde!). Hélio e Fernando, membros honorários do grupo, compareceram para o debate, seguido de delicioso almoço, entre antigos e novatos do Clube flutuante: Juan Arias, escritor e esposo de Roseana, os professores Felipe, Adelaide e Maria Clara, o poeta-vereador Chico Peres, seu irmão César e Fátima Alves, Hecto e Flora , Gil , a reaparecida Leila e os estreantes Jonas ,Pollyana e Lenivaldo Ausências mais lembradas: as Ângelas. Incumbida,como leitora veterana, de subsistir Roseana na condução da reunião, dei o chute inicial de que o livro tratava da formação de uma longa amizade – entre Henrik e Konrad – desde a infância, intermediada pela formação na maturidade de um triângulo amoroso entre dois amigos e a mulher , que uma vez rompido, pela fuga sem explicação de Konrad teria causado consequências irreversíveis na vida dos três: o general Henrik esperaria por 41 anos e alguns dias a volta de seu amigo para apurar uma verdade. A minha hipótese de que a história nos apresentaria um triângulo amoroso na relação entre os principais personagens gerou imediatamente acalorada divergência de opiniões em relação a este ponto:se teria ou não havido um vetor homossexual entre os amigos no triângulo que viveram.Leila disse não ter imaginado isso nenhuma vez sequer na leitura do livro, que nada havia de concreto, nem de sugestivo em relação a isso. Fernando ponderou que se o próprio Konrad teria apresentado Kriztina ao amigo Henrik, vindo depois a torná-la sua amante isso era sim indício de uma posse indireta do corpo do amigo; Jonas declarou que no começo achou “que eles iriam se pegar”; Felipe fez uma colocação pessoal de que já vivera amizade de um tipo assim bem estreita, de complementariedade, também seguida de afastamento e tinha sido mal-interpretada, sem nada de sexual ter havido, perguntou se as pessoas do grupo vivenciaram algo assim; muitos concordaram que viveram situações sentimentais algo confusas. Chico, César e Felipe leram à propósito trechos do livro que falam da presença de Eros nas amizades, na leitura quando jovem e releitura da teoria de amor de Platão da personagem do general em sua busca de compreender a amizade; mencionei os ensaios de Montaigne sobre a amizade como uma relação onde somos narcisos do outro – do amigo que possuímos; Juan, conduzindo-nos para um debate propriamente mais literário do livro, lembrou trechos de grande qualidade poética como os da descrição sensível, feita pelo general, da caçada, em que Konrad apontando um cervo por detrás de Henrik teria a oportunidade de matá-lo se quisesse, fingir que sua morte teria sido fruto de um acidente para ficar com sua mulher; e ainda descrição da arrumação detalhada da sala de jantar com”as velas azuis que queimariam até o fim”, na noite em que os dois amigos aos 75 anos afinal tiveram a conversa definitiva depois de 41 anos e dias sem se verem;Juan mencionou, inclusive, que o título da tradução portuguesa para este livro era mais fiel ao original –” Velas que queimam até o fim” , ao que eu observei que As brasas também respeitava o clima do livro de fogo vivo até o fim; Hector aproveitou a deixa para malhar as traduções em português, que algumas em inglês eram melhores, que ler no original, sim, claro que sim – ponderei que mesmo ruins é melhor haver traduções que não, e que se hoje temos traduções melhores de um Dostoiévski,por exemplo, é porque algumas gerações de tradutores se aventuraram antes, dando-nos a ler autores de línguas pouco conhecidas de nós ; Hélio e Fernando que foram os únicos a trazer poesias húngaras para a roda, reclamaram também – não sabiam se eram tristes os poemas ou as traduções; (Continuo pensando: sem tradutores, como fazer esta e outras rodas de leitura?) Em relação à apresentação das personagens, muitos se confessaram irritados com o tamanho da fala do general Henrik em relação às poucas informações que o Capitão Konrad deu sobre si e seus atos entre o dia de sua fuga (ele nega sempre ter fugido)e sua volta. Em relação ao primeiro, Gil resumiu a ópera: ” Fiquei estressada com o homem que não parava de falar , nem deixava o outro responder às perguntas que fazia. Mas depois pensei que ele estava entalado há 41 anos e tal. Então, o melhor é falar. Fala, meu filho”; Alguns consideram que a enorme fala do general feita para o seu antigo amigo sobre o que teria se passado no dia da caçada que foi o mesmo da fuga seria uma espécie de se mostrar afinal vitorioso, de mostrar que ele já sabia de tudo , que não fora enganado. Felipe considerou que o autor forçara um pouco a barra, pois que um personagem militar, não acostumado a pensar sentimentalidades se mostrava filosófico demais naquela conversa. Eu objetei que, no caso, não estávamos diante de um personagem caricato, um militar obtuso, mas de um ser humano que trabalhara durante décadas as suas memórias, diversificando suas reflexões. Lembrei à propósito o livro Memórias, sonhos e reflexões de Carl Jung, livro de cabeceira de Fernanda Montenegro que sua filha tentou várias vezes ler quando moça, só conseguindo quando envelheceu, como disse a sua mãe. A jovem Pollyana observou que o vômito verbal do general tinha a ver com os diversos silêncios que perpassam a relação entre todos os personagens, desde os principais. Foram sendo lembrados, entre outros, os silêncios de Henrik – que nunca mais falou com a mulher por oito anos, até ela morrer, depois que descobre que sua mulher era amante do amigo –Konrad, que pouco ou nada conta de sua casa ao amigo, Kriztina, que escreve num diário coisas que não consegue dizer ao marido; aos secundários: Nini, a ama de 91 que

Catedral do Mar

Ontem foi o encontro do nosso Clube de Leitura da Casa Amarela. Cedinho fiz os pães e junto com a Vanda , uma comidinha ótima: arroz com bacalhau e purê de abóbora com leite de coco e coentro. De sobremesa trouxe doces de Minas, Hélio e Fernando trouxeram cuscuz e Flora e Hector trouxeram um bolo cuja receita Flora experimentava pela primeira vez. Hector disse que seríamos cobaias, assim como os reis tinham alguém que experimentava a comida antes para se saber se estava envenenada. A discussão do livro A Catedral do Mar de Ildefonso Falcones foi calorosa. Fernando começou citando o livro do meu marido Juan Arias, 50 Motivos para Amar o Nosso Tempo, para comentar que perto da Idade Média vivemos no melhor dos mundos. E todos falaram das crueldades terríveis que eram moeda comum e que hoje são impossíveis em quase todos os lugares, eu disse quase. Todos citaram as partes mais tristes, mais impressionantes. Maria Clara falou do personagem principal como um super herói, mas apesar das improbabilidades dos encontros que o livro apresenta, a trama é muito bem montada e você não respira até o final.Cristiano falou da complexidade do personagem Juan, irmão adotivo de Arnau. Falamos do amor das mães do livro. César achou que Mar era a personagem mais fraca, menos bem construída.Maria Clara achou que o encontro final entre os dois ficou muito ambíguo. Falamos da inquisição e principalmente do poder. Ronaldo sublinhou que para ele a questão principal do livro era esta. Gil falou que as coisas não mudaram tanto. Os pobres continuam sendo sempre os grandes injustiçados. Falamos dos judeus, das injustiças sofridas. Todos concordaram que o livro era uma aula de história, Maria Clara frisou o quanto aprendemos sobre Barcelona e a Idade Média e como o livro está bem fundamentado. Ela trouxe um livro sobre o Gótico e mostrou as fotos da Catedral do Mar. Juan trouxe várias críticas que saíram no El País, seu jornal, críticas que acabaram com o livro, dizendo que é um quase plágio do livro Os Pilares da Terra e é catalanista. Eu acho que sim, o autor se inspirou nos Pilares da Terra, de Ken Fowlet e não sei se isso é um crime, a Idade Média está aí em mil livros de história e cada autor faz o que quiser com este material riquíssimo. A trama é diferente, os personagens são diferentes.Não acho que o livro seja catalanista, ele simplesmente conta a história de Barcelona. Chico achou o livro grande demais, ele poderia ter menos umas 150 páginas, ele disse, mas Maria Clara discordou, é aventura até o final. Discutimos qual das mulheres seria o grande amor da vida do Arnau e as opiniões foram divergentes. Gil falou que no livro, os personagens de alguma maneira davam a volta por cima e conseguiam sobreviver e naquele tempo isso já era muito. César disse que Arnau era um homem bom, mas a sua vingança não combinava com a sua bondade. Mas achamos muito justa a sua vingança por tudo o que sofreu. Angela, que trabalha na Sala de Leitura da escola Ozires, ganhou um aplauso pela homenagem que vai receber por seu trabalho, homenagem mais do que merecida.A Angela que veio do Rio falou da crueldade contra os judeus e trouxe livros da StellaMaris Rezende que foram sorteados durante o almoço. O poeta escolhido era Lorca e Juan leu esplendidamente La Casada Infiel em espanhol. Ronaldo trouxe o violão e cantou sua versão musical do Verde que te quero Verde.Gil, Hélio, Fernando leram belos poemas e Chico fez um poema sobre o Mar brincando com a personagem. Minha editora Carolina, da Rovelle, veio e sua doçura pairava pela sala. Eu falei da saudade imensa que sinto dos encontros aqui em casa com as escolas, do nosso lindo Café da Manhã Literário. Maria Clara, Cristiano e Ronaldo , que se encontraram na Rodoviária do Rio para vir para Saquarema, de tanto conversar, perderam o ônibus que havia mudado de plataforma e tiveram que vir de táxi para chegar a tempo. Na mesa do almoço éramos uma grande família unida pelos livros. E tomara que este Clube siga por muitos e muitos anos. O nosso próximo encontro será no dia 16 de novembro e leremos As Brasas do Sandor Maarai, que já li duas vezes e lerei pela terceira. Não conheço a poesia húngara e vamos trazer trazer algum poema húngaro. Ronaldo vai pesquisar e trazer alguma música para violão. E o encontro será no sítio de um dos participantes. A todos os que estiveram aqui comigo meu mais profundo agradecimento.

Leituras – Roseana Murray – TV Senado

A escritora Roseana Murray trabalha com o público juvenil, argumentando de forma madura sobre temas como a morte e a solidão, mas sem perder o sentido da esperança e da suavidade.

Volta para casa e Clube de Leitura

Depois de vinte dias na minha casinha da montanha voltei ontem à tarde para casa. Lá não tenho internet e foram dias magníficos de mergulho num outro mundo. Nosso encontro do Clube de Leitura da Casa Amarela desta vez aconteceu na montanha. Muitos aproveitaram para passar alguns dias de férias com a família em Visconde de Mauá. A nossa reunião começou na varanda do Babel Restaurante do meu filho André Murray, com sua vista magnífica. Discutimos o livro A Mocinha do Mercado Central de Stella Maris Rezende,ed. Globo. O que seduziu a todos foi o jogo com os nomes. A cada novo nome acrescentado uma nova personagem nascia e todos ressaltaram o jogo de espelhos, o teatro. A estrutura do romance, nos levava a discutir o texto como um quebra cabeça. Movíamos as peças no tabuleiro .O que era sonho, o que era realidade ou ficção , impossível dizer. Ressaltamos o “aparato” imagina-mágico . A partir destas duas palavras tudo se torna possível. O pai da mocinha foi posto no banco dos réus e absolvido. O romance , de busca do pai, do amor, de novas identidades para encontrar a sua própria identidade ia sempre se desdobrando, se abrindo em encontros mágicos e desencontros: o desencontro da Valentina com a vida. O romance traz para o leitor temas fortes e violentos , estupro, suicídio, a morte de uma criança. Mas com extrema delicadeza vai desatando nomes e nós. Para todos os leitores do Clube, a autora deixou o final em aberto. Assim cada um podia escrever o seu final, escolher um caminho. Todos sublinharam o encontro da mocinha com a poesia , pura magia. Depois brincamos com o significado de nossos próprios nomes e eu ganhei meu nome escrito num grão de arroz, presente de Gil e Maria Clara. Num segundo momento ouvimos histórias das 1001 Noites e poemas do Leminsky. E então fomos para a minha casinha onde comemos um cozido magnífico preparado pelo meu filho André.Fazia frio, a amizade e o prazer do texto discutido nos aquecia. Tivemos novos leitores em nosso encontro: Fátima, César, Denise e algumas jovens e lindas meninas. Maria Clara e Gil plantaram bromélias na mata que envolve a casa. E uma alegria imensa jorrava de dentro de mim.

Elisa Lucinda

Realmente o seu livro o Diário da montanha confirma a irmandade que há em nossos olhares. Fiquei impressionada, Roseana, o livro é lindo, tem imagens maravilhosas e eu vou buscar entre os meus poemas os que são irmãos dos seus. Fiquei muito emocionada,me senti na montanha, na casa, na natureza, prazerosa viajante no comboio de palavras lindas que o seu livro é. Incrível. Há uma tradução tão precisa, parece uma fotografia com cheiro, cor e forma. Obrigada. Achei o abecedário também uma delícia e um livro necessário para as crianças. Mas este Diário da montanha… sem contar a beleza da capa dura, a guarda vermelha, um escândalo! Beijos, Elisa. Elisa Lucinda

O Físico

Chegaram cedo ao nosso encontro, Mariana, que viajou toda a noite de São Paulo para Saquarema e Cristiano e Ana que vieram de Teresópolis.Agradeço especialmente a presença generosa destes leitores que vieram de longe. Não veio Ângela do Rio, mas mandou uma linda carta falando do impacto que a leitura do livro O Físico, do Noah Gordon provocou em sua vida. E a sala foi se enchendo aos poucos e ficou lotada. A discussão do livro, riquíssimo em todos os sentidos, foi quente e maravilhosa. Angela, professora do Osíris, fez um dos depoimentos mais emocionantes que já presenciei, de como este livro foi um grande estímulo para a transformação do seu olhar, de como agora ela sabe que não pode desistir da sua biblioteca, do seu projeto de leitura na E.M.Osíris aqui em Saquarema. Sou testemunha do seu belíssimo trabalho. Maria Clara, como sempre, nos traz com a sua leitura afiadíssima, novos ângulos do livro. Cristiano nos falou dos personagens como arquétipos. Ressaltamos todos como o autor soube amarrar todos os pontos, dar muito bem os seus nós de marinheiro urdidor do texto, nada fica ao acaso, embora não seja histórico, o livro está muito bem fundamentado. Juan nos falou da presença árabe na Andaluzia, da superioridade da cultura árabe sobre os europeus e todos destacaram as diferenças entre a Europa escura, tenebrosa, atrasada, e a Pérsia luminosa, limpa, refinada, requintada. Foram destacadas as belas histórias de amizade que permeiam o livro e muitos leitores se envolveram a tal ponto que acordavam de madrugada para continuar a leitura do livro! Gil nos falou que foi possuída pelo livro com uma tal força que agora sim, sabe que é uma leitora. Hélio e Fernando sublinharam a beleza da cultura árabe, do convívio do judaísmo com o ilsamismo, o que também foi reforçado por Héctor fazendo um contraponto com a situação hoje no Oriente Médio. Felipe ressaltou a beleza do crescimento do livro quando é discutido em conjunto e Ana quer criar um Clube de Leitura em Teresópolis. No final lemos os poemas árabes medievais, cada um mais lindo do que o outro, Aline queria se esmerar na pronúncia do seu poeta escolhido e Juan trouxe um poema belíssimo que leu em espanhol. A surpresa: Mariana, bem escondida dentro da casa (quando os poemas começaram a ser lidos ela sumiu) irrompeu na sala vestida como odalisca e dançou magnificamente, dançarina formada que é em dança do ventre. Ficaram todos de boca aberta e corações na palma da mão. Foi insuperável! O almoço foi esplêndido: salada de grão de bico, arroz com lentilha coberto com uma camada de cebolas fritas no azeite e quibe de forno. Fiz um pão integral, um com queijo e outro de milho e as sobremesas foram um capítulo maravilhoso: Vanda fez um pavê incrível, parecia uma espuma, Gil trouxe um doce de chocolate crocante indescritível e Hélio e Fernando trouxeram cuscus. Vinho tinto para aumentar a alegria e a temperatura amena, o dia tão azul, tudo à nossa volta era cenário. E o próximo encontro será no dia 27 de julho na minha casinha em Visconde de Mauá. Para minha surpresa todos amaram a idéia e já irão reservar uma Pousada no Vale do Pavão. Para chegar na minha casinha basta seguir as setas do Babel Restaurante, é lá. Vamos ler A Mocinha do Mercado Central, da Stella Maris Rezende, ed. Globo e poemas do Leminski. Além disso cada um levará um conto das Mil e Uma Noites para prorrogar um pouco este clima oriental que nos encantou.

Luana Raquel da Silva – Universidade Federal de Rondônia – Campus Vilhena

Receita de espantar a tristeza (Roseana Murray) Faça uma careta e mande a tristeza pra longe pro outro lado do mar ou da rua vá para o meio da rua e plante bananeira faça alguma besteira depois estique os braços apanhe a primeira estrela e procure o melhor amigo para um longo e apertado abraço. O poema proporciona uma imagem de movimento: parece pedir certas ações internas e externas do leitor: as primeiras, interiores, como base para a realização das segundas, que por sua vez, são exteriores. Desenha-se um estado de humor que vai se alterando, ou que deve ser alterado, conforme as ações que devem ser feitas, a partir de um “passo-a-passo” para mandar a tristeza embora. O conjunto de verbos no modo imperativo faça, mande, vá, plante, estique, apanhe, procure, parece marcar a função conativa da linguagem eaponta uma série de ordens ou conselhos, traço linguístico comum em receitas (textos instrucionais). As estrofes – versificadas sem pontuação – se posicionam obedecendo à ideia de gradação, apresentando ideias de ações internas (mandar a tristeza embora) e externas (ir para o meio da rua e abraçar um amigo). Pode-se pensar que elas funcionam como grandes (or)ações principais, responsáveis por gerar o que vem adiante, não permitindo que as ações sejam independentes ou que sejam trocadas de lugar: para a receita surtir efeito, as ideias (estrofes) devem obedecer à regra de estarem umas após as outras. Embora haja, explicitamente, apenas um advérbio de tempo no poema (depois, no primeiro verso da terceira estrofe), é perceptível a presença implícita de outros, sublinhando ainda mais a sensação de ordem, de gradação das ações, como sugerido a seguir: Primeiro¹, faça uma careta depois, mande a tristeza pra longe pro outro lado do mar ou da lua agora, vá para o meio da rua e plante bananeira, faça alguma besteira Depois², estique os braços e apanhe a primeira estrela Por fim, procure o melhor amigo para um longo e apertado abraço. A noção de movimento em “Receita de espantar a tristeza” é formada nítida e gradativamente; contudo, não apenas a partir dos verbos ativos, mas através de todo o conjunto de escolhas estilísticas. Para se contrapor à organização gradativa do poema, analisa-se agora, por último, o título (que é o começo): ele aparece como índice de um “modo de fazer” que independeria de ações subjetivas, quando, na realidade, parece desafiar quem recebe a “receita”, convidando o receptor a ser o ingrediente principal. Movimentar-se dentro de si, no mundo e para o outro é, no fim, a receita de espantar a tristeza. ¹ Os advérbios negritados e as vírgulas são sugestões minhas ² Tal qual o original Universidade Federal de Rondônia Luana Raquel da Silva Análise estilística de “Receita de espantar a tristeza”, de Roseana Murray

Aline – Universidade Federal de Rondônia – Campus Vilhena

Beija-flor Beija-flor pequenininho que beija a flor com carinho, me dá um pouco de amor, que hoje estou tão sozinho… Beija-flor pequenininho, é certo que não sou flor, mas eu quero um beijinho, que hoje estou tão sozinho… (Roseana Murray, versão obtida no blog da autora: http://blogdaroseana.blogspot.com.br) Beija-flor, de Roseana Murray, é uma composição curta, constituída por duas quadrinhas heptassílabas cujo conteúdo ostensivo, de extrema simplicidade, não oferece qualquer dificuldade de compreensão para o leitor: o poema é escrito sob a forma de um apelo ou súplica – o pedido de um ‘beijinho’, de um eu-lírico que fala na primeira pessoa, dirigido a um ‘beija-flor pequenininho’. Não obstante essa aludida simplicidade, merecem nota alguns procedimentos utilizados pela autora na fatura do poema. O verso de sete sílabas, utilizado em Beija-flor, é o verso popular por excelência, de grande variação rítmica e com regras de acentuação, em princípio, mais fáceis de seguir, utilizado na literatura de cordel e nas cantigas populares. Esse esquema rítmico particular, aliado à repetição, na segunda estrofe, do primeiro e último versos da primeira estrofe faz lembrar o rondó, forma fixa de composição musical. O esquema rimático AABA //ABAA reforça também essa natureza musical do poema – note-se que a rima consiste quase exclusivamente na reprodução do / ɲƱ/ no final de seis dos oito versos que compõem as duas quadras, repetição que evoca a regularidade típica da canção popular. O léxico e a sintaxe de Beija-flor são também simples, organizados numa ordem expositiva clara e direta, numa quase ausência de linguagem figurada, sendo as palavras utilizadas, em geral, no seu sentido mais próprio. O verso de abertura do poema é marcado por um enjambement com o segundo verso, cuja vírgula final marca sintaticamente a presença de um vocativo, correspondendo, no plano semântico, a uma apóstrofe ou invocação da entidade do ‘beija-flor’. Esse enjambement é único no poema e contrasta com os demais versos, que constituem unidades sintáticas completas. Notemos que a presença da vírgula apenas no final do segundo verso (‘Beija-flor pequeninho/que beija a flor com carinho,’) atribui um carácter restritivo à ideia de ‘beijar a flor’, em contraste com a possibilidade de uma oração explicativa, o que aconteceria caso a vírgula fosse deslocada para o final do primeiro verso (‘Beija-flor pequeninho, / que beija a flor com carinho,’). O ‘beija-flor’, entidade evocada, adquire aqui, então, especificidade: é ‘pequenininho’ e, simultaneamente, é o que ‘beija a flor com carinho’, deixando de ser qualquer para ser aquele. Outro aspecto sintático que merece nota ocorre no terceiro verso. Nele, a anteposição do pronome reflexivo ‘me’, sintaticamente objeto indireto da frase, ao verbo dar, no presente no imperativo, é marca da oralidade e, embora não chegue a constituir um desvio significativo, é de assinalar a sua harmonia com o carácter popular do poema a que aludimos no início. A pontuação, por sua vez, é marcada por um uso predominante da vírgula, que aparece em cinco versos, e pela ausência de ponto final, substituído por reticências. Entendemos aqui o uso da vírgula, o sinal de pontuação mais afeito à oralidade e ao seu caráter continuum, como sendo outro aspecto formal em consonância com plano de conteúdo, que, não nos esqueçamos, pode ser compreendido como uma espécie de ‘diálogo’ ou interpelação direta da entidade do beija-flor. Já a utilização das reticências pode ser lida como uma pausa voluntária na ‘fala’ do eu-lírico, sugerindo uma dificuldade em verbalizar a sua solidão (‘que hoje estou tão sozinho…’), comprovada pela mudança brusca de assunto que ocorre no verso seguinte. A sonoridade expressiva lograda pela aliteração da nasal palatal (‘pequenininho’, ‘carinho’, ‘sozinho’, ‘beijinho’) sublinha o carácter motivado da seleção lexical: é, pois, precisamente essa aliteração que ajuda a construir um tom tristonho, disfórico e monótono, em harmonia com a súplica e a expressa solidão que ocorrem do plano de conteúdo. Assim, entendemos a evocação da presença do beija-flor por parte do eu-lírico: estando triste, sozinho e como estratégia de solução para esse estado, evoca o pássaro associado ao amor romântico e à claridade e ao qual se atribuem poderes de cura e de atração da felicidade. Chama-nos a atenção, por último, o carácter lúdico que, ainda que discreto, é passível de ser identificado na utilização que o poema faz de dois vocábulos específicos. Note-se que ‘beija’, justaposto a flor, em ‘beija-flor’, é um substantivo; no segundo verso, o mesmo vocábulo transforma-se em verbo transitivo direto, cujo complemento é ‘flor’. Semelhante situação ocorre com o vocábulo ‘flor’ – notemos que, no primeiro e segundo versos, ‘flor’ é substantivo; já no sexto verso, o mesmo vocábulo transforma-se em adjetivo, numa construção marcada pela ausência de um previsível artigo indefinível que o substantivaria (‘é certo que não sou flor’). Estes ‘jogos morfológicos’ fazem também de Beija-flor um exercício lúdico de exploração da linguagem. Aline Universidade Federal de Rondônia – Campus Vilhena

Lilian Rocha de A. Hattori – Universidade Federal de Rondônia – Campus Vilhena

Uma possiblidade de leitura do poema “O poeta”, de Roseana Murray O poeta O poeta vai tirando da vida os seus poemas como pássaros desobedientes e amestrados A palavra é o seu castelo sua árvore encantada, abracadabra construindo o universo. A presente análise procura demonstrar a desestabilização de sentido no poema “O poeta”, de Roseana Murray. No primeiro verso do poema o verbo “vai” acompanhado de um verbo no gerúndio (“tirando”) cria uma ideia de prolongamento do ato do poeta, gerando a sensação de que a ação dele é eterna. A ausência de pontuação encarada como pausa ou interrompimento, nessa estrofe, acentua esse prolongamento. É como se o poeta estivesse sempre a construir os seus poemas. os seus poemas como pássaros desobedientes e amestrados O uso da comparação (“os seus poemas / como pássaros desobedientes ∕ e amestrados”) cria semelhança entre os dois substantivos, pois a construção do poema é sempre uma lida, em que o poeta trabalha com uma pluralidade de sentidos que precisam ser adequados (amestrados) a sua necessidade. A palavra é o seu castelo Esse verso pode SER entendido de duas formas Numa primeira, a “palavra” pode ser tomada como moradia do poeta, já que ele a habita. Ela é sua matéria prima e o seu resultado. Numa segunda leitura, a equiparação da “palavra” ao “castelo” confere àquela o poder de ser construída. A palavra é o seu castelo sua árvore encantada, abracadabra construindo o universo. O último verso aparenta ser contraditório a toda a construção anterior do poema. Pois, quando “abracadabra” é colocada como sujeito da oração (“abracadabra construindo o universo”), ela se torna a agente da construção. De que universo fala o eu poético? Se do universo da linguagem, universo como linguagem, a construção desse universo já não é do poeta e sim da magia. Essa resultante desconstrói o que antes havia sido colocado no poema. O que antes era construído como um poema metalinguístico é destruído por sua própria estrutura. Universidade Federal de Rondônia – Campus Vilhena Língua Portuguesa V Professor: Carlos Cintra Acadêmica: Lilian Rocha de A. Hattori