Clube de Leitura da Casa Amarela

Em 2010, a partir da leitura de um livro, A Sociedade Literária e a Torta de Casca de Batata, resolvi tentar fazer um Clube de Leitura na minha casa, com toda esta beleza de Saquarema como cenário. As pessoas chegaram para este primeiro encontro e ao longo destes 10 anos tanta gente foi chegando e saindo e chegando. Nosso Clube de Leitura da Casa Amarela está numa dissertação de Mestrado sobre modos de leitura, de Maximiano Martins de Meireles , da Bahia. Algumas vezes recebemos leitores que vieram de longe, Bahia, Brasília, Minas, S.Paulo. Temos pessoas de profissões muito diversas em nosso Clube e vários professores. Isso é muito bom. Muitas vozes. Antes da pandemia, terminávamos o encontro com um almoço maravilhoso na varanda, com a música do mar. Pão, vinho e abraços Na pandemia optei por fazer nossos encontros por zap. É impressionante a força da voz sem imagem. Cada um grava seu depoimento e comentamos digitando. Como estamos no modo virtual, algumas pessoas de outros lugares puderam entrar. Temos até uma leitora de Tel Aviv. O livro discutido foi Torto Arado, de Itamar Vieira Junior. O impacto do livro sobre nosso grupo foi imenso. Todos sabemos que a Abolição foi de uma crueldade única, como foi a escravidão. Milhões de escravizados foram jogados na rua, sem comida, moradia, escola, saúde. Itamar nos leva para um tempo, algumas gerações depois, onde os descendentes dos escravizados continuavam nas fazendas, trabalhando sem salário, sem nem um dia de descanso, em troca de casebres precários, de barro, pois era proibido construir com alvenaria. Era preciso plantar para comer, fora das horas de trabalho e mesmo assim, a metade da colheita era roubada pelo gerente da fazenda. É nesse cenário que o romance acontece, entre a dor e os amores, os encantados, a brutalidade do cotidiano. As mulheres são a força da terra. São arquétipos. Não vou contar o livro. Pois deve ser lido obrigatoriamente. Como disseram no Clube, fomos arados por este Torto Arado, pela beleza de cada personagem, pela consciência que vai emergindo. É um livro tão impactante que deve ser lido duas vezes. Donana, Bibiana, Belonísia, Salu, Zeca Chapéu Grande, Severo, o Jarê, um punhal. Lemos o livro com o coração, com todos os sentidos. É um romance sensorial. Jamais esqueceremos.

Clube de Leitura da Casa Amarela

Uma sinfonia de vozes maravilhosas, uma orquestra de leituras, que como uma pedrinha que se joga no lago e suas pequenas ondas vão se alargando, assim aconteceu no encontro do dia 12 de dezembro em nossa discussão sobre o livro Despertar os Leões, de Ayelet Gundar-Goshen, uma jovem escritora israelense. Eram dois livros, o outro, o conto do Balzac, Uma Paixão no Deserto. O Clube da Casa Amarela agora é uma construção de vozes. Ao invés de tijolos, ferragens, portas e janelas, a casa física se faz em timbres, palavras, ideias. Ontem passamos quatro horas em dois desertos e abolimos o tempo, abolimos os 200 anos que separam um deserto do outro. Os dois livros falam de paixão, desejo e morte. Mas Despertar os Leões vai muito além de paixão e desejo e morte. Em sua trama nos traz questões éticas, a tragédia dos refugiados ilegais, o fosso social entre os visíveis e os invisíveis, a questão das mulheres refugiadas, constantemente violentadas, o trabalho ilegal, quase escravo. Entramos no mundo invisível dos refugiados eritreus em Israel. É um livro denso, belo. Fala de um amor que lateja, entre pessoas de dois universos tão desiguais. Fala do leão selvagem dentro de cada um. O conto do Balzac fala de uma paixão inesperada, singular. O olhar sobre o deserto em cada um dos dois livros é muito diferente. Em Despertar os Leões o deserto é hostil. Em Uma Paixão no Deserto o deserto é belíssimo, de uma dolorosa beleza. Nos dois desertos, as histórias se passam sob o signo da lua. Sob o feitiço da lua, que estava lá, imutável , pantera de prata, nas duas tramas. A lua foi a regente do nosso encontro, em pleno sol. Agradeço aos leitores do Clube de Leitura da Casa Amarela, a cada um, sem o seu amor pelos livros, as quatro horas que passamos juntos seriam muito diferentes. Seriam as horas que passamos em nossos afazeres, muitas vezes sem deixar marcas. Pela voz de cada um, pelos comentários de cada um, essas horas ficarão para sempre inscritas em nossos corações, nesse tempo duro em que atravessamos um grande deserto cheio de minas e na literatura encontramos alento.

Clube de Leitura da Casa Amarela

Nosso encontro do Clube de Leitura da Casa Amarela teve uma altíssima voltagem emocional. Fazemos sem imagem. O processo é simples: abro o encontro e vou chamando as pessoas. Cada pessoa já gravou seu depoimento previamente. Entre uma gravação e outra há um intervalo para os comentários digitados. A voz de cada um ressoa nítida e a emoção de cada fala se espraia por nosso corpo como ondas de rádio, notícias do que um livro é capaz de fazer em nossas entranhas. Como a Rádio Relógio chegava até Macabéa. Lemos A Hora da Estrela, da Clarice Lispector. Macabéa, essa estrela quebrada, síntese dos invisíveis, dos ninguéns, de quem não tem palavras, de quem da vida só recebe migalhas, como pombos anônimos numa praça, nos invadiu com sua quase existência. Os depoimentos, enquanto se avolumavam, traziam leituras riquíssimas e diferentes, tesouros. Clarice nos fala numa entrevista, enquanto escrevia o livro, que foi na Feira de S.Cristóvão que a personagem entrou dentro dela. E nos diz que ao sair da Feira pensou: “e se um carro me atropelasse?” A Hora da Estrela é de uma força que quase nos aniquila. Além de ser a metáfora de milhões de brasileiros, há uma Macabéa dentro da gente, quando, inseguros, buscamos tateando o amor e a felicidade. Mas o milagre em Clarice é a maravilha da sua escrita. Cada frase é um susto, um assombro, um poema.

Clube de Leitura da Casa Amarela

Nosso Clube de Leitura da Casa Amarela se reuniu por zap, durante três horas e meia, para discutirmos Olhos D’Água de Conceição Evaristo. Em nosso encontro as pessoas já deixam uma gravação pronta, de no máximo três minutos e depois damos um tempo para que todos comentem o que foi ouvido até que entre a próxima gravação. Com Conceição fechamos uma trilogia de sobreviventes de genocídios, que começou com Anne Frank, que embora tenha morrido pouco antes da guerra acabar, ficou viva para sempre, pois sua voz clara, cristalina , nos chega dos escombros do Holocausto, com sua crença na bondade humana. Krenac é a voz dos sobreviventes indígenas, do genocídio indígena das Américas e apesar da sua dureza e lucidez, ele nos diz que uma outra maneira de viver é possível, é possível adiar o fim do mundo criando outro. Conceição é a voz dos sobreviventes do genocídio africano, da crueldade deste país, da monumental injustiça para com os descendentes dos que vieram nos Navios Negreiros. Conceição, em seus contos de Olhos d’Água coloca em nossos braços a brutalidade do cotidiano da gente brasileira, sem acesso aos direitos mais básicos para que se possa viver com um mínimo de dignidade. Os contos, embora tantas vezes atravessados por um vento poético, são duríssimos e transbordamos de tristeza por todas estas crianças assassinadas, por todas as mulheres com seus sonhos estilhaçados, por todas as mulheres estupradas, pelos suicídios de quem não tem mais saída, pelas mortes solitárias, por outra vida possível que não acontece porque o país não permite. É um livro duro. Enche nossos olhos de água. A discussão foi belíssima. Felizmente temos no Clube vozes muito variadas e coloridas e também casamentos mistos, de preto com branca, branco com preta e preta com preto e o racismo foi a tônica da discussão, inclusive com depoimentos pessoais. Felizmente há uma consciência emergindo, novas vozes surgem para denunciar, gritar, escrever. Sugeri a leitura do livro A Vida Não Me Assusta, de Maya Angelou com pinturas originais de Jean-Michel Basquiat como complemento. Para o próximo encontro, em 24 de outubro, vamos ler A Hora da Estrela, de Clarice Lispector.

Bruna Camargo

Oi, Roseana, tudo bem? Quero deixar aqui um depoimento para você. Tive contato com seus poemas no início da minha adolescência (hoje tenho 29 anos!). Se eu não estou enganada, foi por meio de uns livrinhos que o governo do estado de São Paulo distribuiu para as escolas públicas. Comecei a frequentar bibliotecas com uns 6 anos, mas foi ali, com 11/12 anos que me apaixonei por suas palavras e aprendi a amar poesia. Eu lia e relia seus poemas, sabia vários de cor hahah Foram eles que me inspiraram a escrever, inclusive eu dava aquela imitadinha básica no seu estilo, né! Cheguei a ganhar um concurso com 15 anos, com um poema original, e quando leio hoje não consigo não ver uma pitada de inspiração na Roseana. Escrever poesia foi uma forma de desabafar e refletir sobre mim mesma nessa fase de adolescência que é meio conturbada. Até hoje mantenho o hábito de escrita e guardo com carinho no meu coração seus poemas tão singelos. Fiquei muito feliz de ter encontrado você por aqui e ter a oportunidade de dizer: obrigada! Seu trabalho é lindo e foi a semente que gerou muitas coisas boas em mim em relação ao universo literário. Espero que minha história tenha aquecido um pouquinho seu coração hoje. Abraços!

Clube de Leitura da Casa Amarela

Talvez o chamamento do Krenak para adiar o fim do mundo tenha sido uma das coisas mais impressionantes que já tenha acontecido com o Clube de Leitura da Casa Amarela. Nosso encontro virtual acontece por zap, para que não tenhamos restrição de tempo. No dia 25 de julho de 2020, nossa conversa durou mais de três horas. Quando terminou as pessoas almoçaram e voltaram e não pararam mais de falar e juntar as suas mãos, as suas vozes para suspender o céu. Começamos com um mito indígena Carajá, que Edith Lacerda nos trouxe. E assim entramos na dimensão mágica que a voz do Krenac nos propõe, onde um rio é seu avô, um rio que está sendo velado depois de morto, até que um dia os espíritos, quem sabe, o ajudem a reviver, onde as pedras são parentes, onde homem e natureza se fundem, porque somos apenas uma variação de milhares de formas de vida. Krenac desnuda o absurdo que é a nossa “humanidade” depredadora, genocida, e nos fala de outra humanidade, a que vive nas beiradas, nas margens, dentro das florestas, a que é invisível, sem voz e que possui outra maneira de dizer o mundo, a vida. Krenac nos mostra a nossa verdadeira face: zumbis, consumidores, autômatos, buscando como cegos o sentido da vida, quando o sentido da vida é a própria vida. Krenac nos chama para que reavivemos a chama sagrada da lucidez, para que recusemos o que essa ” humanidade” nos propõe: a destruição da Terra, das montanhas, dos rios, das florestas, das vísceras da terra, até que nada sobre e o céu caia sobre nós. Para que isso não aconteça, que se construam outros caminhos, outra escuta para outras vozes. Paula, nossa leitora de Brasília, nos contou de sua tataravó índia, raptada: “Ô povo querido, sinto muitas saudades …. Sinto-me também transpassada e tocada pela leitura de ” Ideias para adiar o fim do mundo”, de Ailton Krenak. Há muito não me sentia tão capturada por uma leitura, que testemunha a vida de povos que possuem uma forma tão singular e respeitosa de habitar a terra. Enquanto vivemos com a vida em estado de suspensão e morte em função da pandemia, Krenak é testemunha viva de um modo intenso de viver no agora, e assim ” adiar o fim do mundo”. Mas, hoje, vou me prender no miúdo de minhas histórias. Minha tataravó era índia, que fugiu com um branco, nas beiradas da cidade de Campina Grande, na Paraíba. Nunca se falou disso na família, não era um assunto comentado, fazia parte das histórias familiares silenciadas. Para ter sua história tão sufocada, sempre imaginei o quanto ela, minha tataravó, foi sufocada e maltratada. Agora entendo mais ainda as razões. Além do preconceito já sabido, Krenak expressa a força da vida dos povos indígenas e toda a potência simbólica, estética e política que essa forma de viver na terra tem para balançar, desnortear e até derrubar nossas estruturas colonizadas e eurocêntricas. Em uma entrevista feita a Kreinak, perguntam: ” O que o índio pode ensinar para o branco?” E ele responde: ” O que ele quiser aprender!” Jiddu, lindamente mestiço, nos falou de sua origem indígena por parte de pai e como o pai lhe ensinou a escutar tudo, as panelas, os postes, a terra, o fogo, porque tudo fala. E a energia que houve neste encontro, cada um em sua casa, gente de longe, de Goiânia, S.Paulo, Brasília, Visconde de Mauá, Ceará, Tel Aviv, era um rio caudaloso, vivo, serpenteante. Cada depoimento maravilhoso, pura emocão. Cristiano Mota cantou. Ana Cristina cantou. Nati falou seu poema. E Edith fechou nosso encontro lendo um trecho do seu livro Tempo de Aldeia. Nosso próximo encontro será com Conceição Evaristo, Olhos D’Água. Assim completamos a trilogia de vozes de sobreviventes de genocídios. Anne Frank, com seu Diário, morreu, mas não morreu, porque sua voz está viva e chega límpida e potente para denunciar o nazismo. Krenac é a voz mais bela que, penso, temos hoje, sobrevivente do genocídio indígena em curso desde 1500, acirrado por um Governo disposto a levar este projeto de destruição até a solução final. E Conceição nos traz com sua voz o genocídio dos ancestrais africanos, mesmo quando não fala disso, pois, nos ensina Krenac, somos também a história dos ancestrais. Os africanos foram arrancados de suas terras para sempre, despojados de tudo, do nome, da língua, brutalizados, humilhados, assassinados. Conceição nos traz com sua voz o genocídio de talentos no Brasil, quando não oferece educação pública de altíssima qualidade. Nós, leitores pensantes e lúcidos abrimos nossos para- quedas coloridos e tentamos voar e segurar o céu.