Nosso encontro do Clube de Leitura do dia 11 de março de 2017 reuniu muita gente em torno do livro O remanescente de Rafael Cardoso.
Quando li o livro fiquei muito impactada, pois essa história tem liames profundos com a minha própria história. Quando uma história se enlaça com a nossa, quando numa grande vertigem somos sugados para dentro de um livro, para um outro espaço – tempo, quando seus personagens se fundem com nossas almas e ossos, então o milagre aconteceu e saímos do lado de lá transformados, porque não há lado de lá ou de cá.
Eu estava em Visconde de Mauá, na minha casinha da montanha, acendendo o fogão de lenha. Uma página de jornal na minha mão falava da Berlim de 1920, da Berlim do Nazismo, da Berlim de hoje, tão miscigenada. Não acreditei na coincidência. Personagens que estavam na festa que abre o livro em julho de 1930, estavam no artigo.
Resolvi guardar o jornal e abrir o nosso debate com a sua leitura. Propus discutirmos o livro por cenas ou acontecimentos.
Mas Cristiane disse, não! Antes preciso ler as últimas frases do Prelúdio.
No prelúdio o autor conta como foi atropelado por sua história familiar quando soube que seus avós não eram franceses, mas sim alemães.
Então Cristiane leu: “ Palavras podem conter imagens. Imagens podem ter significados múltiplos. Tudo pode não ser bem o que parece. Este livro não é um simples inventário de achados, mas o memorial da enxada que revira a terra escura do passado”.
Eu mesma contei um pouco da minha infância. A tristeza que foi viver numa casa de imigrantes. Meus pais também vieram de navio. E eu nunca fiz as perguntas que hoje estão na ponta da minha língua, mas não há papéis para decifrar, eles estão mortos, morrerei também sem as respostas.
Laís e Sarita falaram a mesma coisa. Elas também filhas de imigrantes judeus poloneses.
Então começamos com a primeira cena do livro. Uma festa magnífica na casa do Hugo Simon, banqueiro, homem sensível, socialista, judeu alemão totalmente assimilado, mecenas, culto, um homem verdadeiramente extraordinário, cercado pela nata da inteligência alemã. Filósofos, pintores, cientistas. Estamos em abril de 1930. Gertrudes sua mulher é uma anfitriã perfeita. O casal está vivendo o esplendor, que logo, se estilhaçará em mil pedaços. Como os vidros, na noite de cristal.
Passamos para a cena do restaurante onde estão Demeter e Ursula e onde pela primeira vez nos defrontamos com um nazista de carne e osso. O primeiro ovo da serpente. Este nazista reage violentamente a um beijo entre duas mulheres e Ursula sai em defesa das duas de uma maneira magnífica e selvagem.
Evelyn Kligerman sublinha o quanto esta Ursula se parte e fragiliza com o exílio e o triângulo amoroso que viverá com a irmã.
Falamos da fuga. De como Gertrudes já estava com tudo preparado antes de Hugo lhe dizer que fugiriam. Falamos da intuição feminina, mas Andre Murray, meu filho,sublinha que esta mulher que sabia organizar um jantar esplendidamente, sabendo quem deveria sentar-se ao lado de quem, era uma grande estrategista e usa esse talento cada vez em que a linha entre a vida e a morte fica muito tênue.
Hector diz que era impressionante como os nazistas nunca estavam a mais de 300 metros dos personagens. Hector nos lembra as origens da II Guerra e fala em como hoje estamos vivendo um momento também tão estranho e perigoso.
Falamos da fuga de Paris, de como Demeter, que no começo era um dândi, cresce como ser humano a partir do momento em que não sendo judeu, escolhe ficar com a família, fugir do trem, entrar para a resistência…
Gilcilene diz que ficou muito triste do autor não escrever o seu reencontro com a família que conseguiu resgatar.
Falamos da chegada no Brasil. Do medo, do pavor de que a identidade original pudesse vir à tona. Falamos do Estado Novo.
Laís nos diz que o livro nos torna melhores, e que para além de todos os ismos o que conta é a bondade humana, a capacidade que o ser humano tem de se reinventar, de cair e levantar.
Falamos do milagre da amizade entre Hugo e Bernanos. Do suicídio de Walter Benjamin e Setephan Zweig. Cristiano conta que Walter Benjamin já estava convidado para dar aulas no Brasil.
Falamos do encontro lindo entre Demeter e Lasar Ségall debaixo da chuva.
Do desejo latente todo o tempo de revelar a identidade oculta, que lateja e dói muito. Evelyn sublinha que hoje por um nada nos derrubamos e imagina o que esses imigrantes passaram, como tiveram que cair e se levantar e seguir em frente, num exílio em espiral que nunca termina, pois ao exílio de fora corresponde um exílio interno, um vagar para sempre.
Imaginem, dissemos todos, os deslocados e exilados de hoje.
E assim fechamos o encontro deste livro absolutamente maravilhoso.
Lemos em voz alta alguns poemas do Gullar. Delma deu um show com o poema que escolheu.
O almoço esteve esplêndido, um coq au vin, preparado com tanto amor por meu filho Chef André Murray. Uma torta de chocolate para os aniversariantes feita pela minha nora Daniela Keiko Takahagui Murray. Livros foram sorteados.
E Rivka nos contou que está criando junto com uma amiga, um Clube de Leitura em Teresópolis. Eu só lembrei: Mas não pode faltar comida! E Rivka disse um ditado em hebraico, que sem pão não há Torá…