Roseana Murray: poesia para jovens leitores – Vera Maria Tietzmann Silva

Leitores e leituras
Uma pergunta que se ouve com certa frequência quando se trabalha com poesia na escola é: existe poesia juvenil? Essa questão requer algumas considerações iniciais.

Até pouco tempo, ou se era criança, ou se era adulto – e é assim que vemos os heróis das histórias de fadas, transformando-se de meninos frágeis e desajeitados em homens viris e independentes, quase da noite para o dia. A denominação “juvenil” aponta para o reconhecimento que a adolescência vem tendo como uma fase bem caracterizada na vida. Atualmente existe toda uma produção cultural voltada para o adolescente, assim como uma ampla gama de serviços clínicos e psicológicos especializados que se ocupam dos problemas próprios dessa fase de transição entre a infância e a vida adulta.

A ideia de se fazer um tipo especial de texto para o adolescente é relativamente nova. As gerações passadas, que se iniciavam na leitura pelos quadrinhos e livros infantis, passavam às novelas de aventuras e, destas, aos grandes ficcionistas e poetas, fazendo essa transição de modo natural, sem traumas ou dificuldades. Mas isso era assim até os anos 60, quando a leitura se incluía entre as opções de lazer, sem vínculos com a escola.

Quando os hormônios promoviam suas mudanças no corpo, e o anseio amoroso ou as dúvidas existenciais avassalavam a mente e inquietavam o coração, meninos e meninas buscavam nos poetas consagrados a voz capaz de expressar em palavras o que eles próprios sentiam. Liam, então, indiscriminadamente poetas clássicos e modernos, portugueses e brasileiros, de Castro Alves a Vinícius, de Camões a Cecília. Não se cogitava a hipótese de existir uma poesia voltada para a adolescência.

Nos anos 70, com a expansão editorial e a intensa oferta de livros para a criança e o jovem, esse público passou a ter acesso a uma produção ficcional e poética específica e atraente. Contudo, a presença da literatura infantil e juvenil na escola parece ter acompanhado a divisão das séries, predominando as obras voltadas para a primeira fase do Ensino Fundamental, havendo menos opções para pré-adolescentes e adolescentes.

A chamada literatura juvenil, de contornos e limites tão imprecisos quanto os do físico e da mente de seus leitores, sem dúvida existe. Ela vem merecendo a atenção da crítica especializada e já há algum tempo tem servido de corpus de análise de dissertações e teses acadêmicas. Maria Zaira Turchi, que vem orientando pesquisas nessa área, comenta:

O gênero juvenil parece estar marcado por uma transitoriedade; melhor dizendo, como o adolescente, a literatura juvenil é um gênero em transição. Essa questão pode ser vista sob dois ângulos: transitoriedade porque a ênfase excessiva em elementos que estão na moda, assuntos e preocupações em evidência entre os jovens, pode fazer a obra envelhecer e tornar-se logo desinteressante ao leitor. Sob outro ângulo, a transitoriedade se manifesta na obra, como Jano, deus bifronte, com duas faces, uma que olha para trás e outra que olha para frente; daí a ambiguidade de alguns textos que suscitam a pergunta: é para jovens ou já é literatura para adultos? (Turchi, 2002, p.29)

Ocorre, porém, que uma consulta nos catálogos das editoras logo deixa perceber que sob o rótulo de juvenil há um imenso número de novelas e contos, porém escassos livros de poemas. A faixa de fronteira entre o infantil e o adulto, o reduzido espaço que permeia os dois olhares opostos de Jano, parece estreitar-se ainda mais quando se entra no domínio do poético. Quando livros de poemas declaradamente juvenis existem, sua qualidade estética muitas vezes deixa a desejar, seja pela banalidade do conteúdo, seja pela indigência das soluções formais. Retoma-se, então, a indagação inicial, com uma variação: existe para o jovem algo que possa ser efetivamente chamado de poesia?

A poesia e seus estatutos

O poeta inglês William Wordsworth (1770-1850) definiu a poesia como “uma emoção relembrada na tranquilidade”, ideia que o teórico italiano Benedetto Croce desdobraria em 1928 ao afirmar que reconhecemos um poema quando “discernimos ao primeiro olhar, constantes e necessários, dois elementos: um complexo de imagens e um sentimento que o anima” (apud Bosi, 2001, p.8). À mola propulsora, que é a emoção, portanto, ele acrescentou um tipo especial de lavor, o da criação de imagens.

Costumamos associar o poema à sua peculiar forma gráfica: a de um texto segmentado com ou sem simetria, em fragmentos denominados versos e estrofes, apresentando uma certa regularidade na repetição de pausas, acentos, sons. Mas o que fundamentalmente distingue um poema de um texto em prosa não é a disposição gráfica das palavras sobre o papel, tampouco o recurso intensivo à sonoridade da língua, num jogo de assonâncias, aliterações, rimas e ritmo, porém é antes o seu especial modo de construção, que exige um leitor especial.

O leitor de poesia precisa estar atento às peculiares da dicção poética para ser capaz de fruí-la em sua justa medida. Para tanto, ele deve ter o ouvido aguçado para apreciar o jogo das sonoridades que, como a música, evoca sentimentos e sensações, reforçando o que as palavras dizem. E ele precisa ter também a visão desenvolvida, ser capaz de “ver com a imaginação”, visualizar mentalmente em cores, formas e volumes aquilo que as imagens poéticas lhe sugerem. Sim, porque é de fato nas imagens poéticas que se fundamenta a linguagem da poesia.

Um texto em prosa se constrói pelo encadeamento de orações, períodos, parágrafos. Um poema, como bem assinalou Croce, se faz com uma constelação de imagens. Ainda assim, não há um divórcio total entre a prosa e a poesia, pois a sintaxe estará presente no poema, e o ficcionista poderá valer-se de imagens ao construir seus textos. Trata-se de uma questão de predominância, não de exclusividade. Enquanto a prosa se guia pela lógica e aciona a mente racional do leitor, a poesia, ao contrário, fala à sua subjetividade, ao seu lado noturno, que ignora o crivo da lógica. Como ocorre com os sonhos, a poesia toca diretamente a emoção do leitor, e a linguagem poética recorre aos mesmos processos da linguagem onírica, transformando o abstrato em concreto, condensando o que é complexo e deslocando livremente as imagens.

Mais do que sua típica disposição na mancha gráfica, o poema se revela como tal por constituir um modo especial de olhar. O poeta observa o mundo com um olhar novo, como se o visse pela primeira vez, como fazem as crianças. O leitor, em contato com o texto, revive essa capacidade de ter um olhar inaugural, capaz de ver poeticamente as coisas mais banais. Por isso, todo poema bem construído deve ter o dom de surpreender o leitor.

A palavra ou locução que corporifica a imagem num poema – em geral um substantivo concreto que se deixa visualizar na imaginação – marca-se pela densidade e se intensifica pela repetição. No mais conhecido poema de Drummond, a cada vez que se repete a imagem da pedra, esse obstáculo no caminho do poeta se torna mais áspero, mais duro, frio e intransponível. As imagens utilizadas, além disso, podem estar sendo tomadas de empréstimo a outros poetas, a outros poemas (o que também ocorre nesse poema de Drummond). Tal furto, longe de diminuir o mérito do poeta, aumenta-o, pois que torna seu texto duplamente instigante, pois provoca o leitor a comparar e a somar ao novo texto os significados do texto original. É a chamada intertextualização.

A leitura de um texto dessa natureza pede uma atitude especial do leitor, semelhante à de um jogador: atenta, alerta, disponível. Cabe a ele fazer o preenchimento dos espaços do não dito, a tradução das metáforas e alegorias, o reconhecimento da ironia, o desvendamento do que é apenas sugerido, a descoberta das alusões a outros textos, a outros autores. Um poeta que permite a seu leitor desempenhar esse papel parte do pressuposto de que ele é inteligente.

Para perceber as imagens e reconhecer as intertextualizações, o leitor precisa ter alguma experiência de leitura, ser capaz de ir além da superfície dos versos. Por isso, esses recursos estilísticos são menos frequentes nos poemas infantis, onde os jogos sonoros e os trocadilhos, que as crianças tanto apreciam, são mais presentes.

Dispomos de duas perspectivas de apreensão da realidade, a da razão e a da emoção. Faz parte da nossa tradição cultural valorizar a racionalidade em detrimento da intuição. É o que a escola faz, compartimentando currículos e avaliando o desempenho dos alunos em termos numéricos. Tudo é regido pela lógica, não há lugar para a emoção ou para a subjetividade. As disciplinas nobres e valorizadas são as que estimulam o raciocínio. As que demandam intuição e criatividade, como as artes em suas várias manifestações, ficam longe dos currículos das escolas que se proclamam “sérias”. Nesta nossa sociedade racionalista, a literatura é o último reduto onde a emoção tem seu lugar, por isso cabe à escola recuperar um pouco desse desenvolvimento emocional que ficou interrompido.

Poesia para crianças e jovens

No artigo “Tendências da poesia infanto-juvenil brasileira”, Maria Zaira Turchi traça um panorama da produção disponível no mercado e propõe uma sistematização desse material:

Pode-se pensar em três grandes modalidades: o poema que se realiza de maneira mais lírica ou mais lúdica; o poema narrativo que é a história contada em versos com rima e ritmo; a prosa poética que, sem estar presa ao verso, se constrói a partir de imagens poéticas. (Turchi, in Mello et al, 1995, p.156)

Direcionados à criança, os poemas lúdicos, que trabalham o humor nas situações que descreve e nas brincadeiras com o significante, parecem predominar. Textos mais estéticos e permeados de emoção voltados ao público infantil são menos numerosos, e a ensaísta dá o merecido destaque ao clássico Ou isto ou aquilo (1964), de Cecília Meireles, que reúne o olhar lírico e os jogos lúdicos com a linguagem:

Como afirma Bachelard, a imaginação não é apenas a faculdade de formar imagens da realidade, mas a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade – uma faculdade de sobre-humanidade: “A imaginação inventa mais que coisas e dramas; inventa vida nova […]”. Os poemas de Ou isto ou aquilo, operando com imagens e símbolos, apresentam uma multiplicidade de significados, que se constroem nos gestos simples do cotidiano infantil – imagens sonoras e visuais – como jogar bola, brincar com o eco, observar o mundo (peixes, bolhas, cavalinho, flor), mas se abrem para o encontro de reflexões profundas sobre a condição humana, recorrentes na sintaxe poética de Cecília. (Turchi, in Mello et al, 1995)

Embora, como todo texto literário bem realizado, o livro de Cecília possa ser lido com prazer por todo o tipo de leitor, ele não contempla uma temática que se poderia definir como juvenil. Ainda demoraria um tempo até que as preocupações adolescentes ganhassem expressão poética. Entre os primeiros poetas a abrir espaço para o público jovem destaca-se Roseana Murray, uma carioca que estreou na literatura em 1980, com Fardo de carinho, um livro de poemas infantis que deixa entrever um parentesco estético com Ou isto ou aquilo. Desde então, essa poetisa vem construindo uma obra sólida e constante, de amplo reconhecimento da crítica, o que se evidencia nas sucessivas premiações e nos estudos críticos sobre sua obra, realizados principalmente nos programas de pós-graduação em Letras. Em 2004, por exemplo, Sonia Maria dos Santos Menezes defendeu sua dissertação de mestrado sobra essa autora, sob o título De água e de ar: a poesia de Roseana Murray, estudo que retomaremos nesta exposição.

Roseana tem algumas obras narrativas, mas seu território essencial é a poesia, que ela produz em gradações diversas, ora mais voltadas para um público infantil, ora para jovens ou mesmo para leitores adultos. As distinções de tom, vocabulário, temas ou recursos estilísticos às vezes são tão sutis que o leitor fica em dúvida sobre qual seria o público-alvo pretendido. Frequentemente o formato e o projeto gráfico, ou, ainda, o catálogo da editora, mais do que os textos em si, é que dão essa resposta.

Se o destinatário dos poemas de Roseana Murray nem sempre é claro, a sua leitura autoriza duas certezas: de que se está diante de textos genuinamente poéticos e de que a autora não subestima a inteligência do leitor com facilitações e redundâncias. Pensando nos adolescentes como possível público-alvo, selecionamos uma amostragem (cerca de 10%) da extensa produção poética da autora. Trata-se de uma seleção representativa da sua trajetória ao longo de três décadas, com dois títulos dos anos 80, dois dos 90 e três dos anos 2000. A seguir, portanto, comentaremos brevemente os seguintes livros, na cronologia de sua primeira edição: Classificados poéticos (1984), Fruta no ponto (1986), Receitas de olhar (1992), O mar e os sonhos (1996), Caminhos da magia (2001), Poesia essencial (2002) e Poemas para ler na escola (2011). Os dois últimos são antologias com poemas de diversas fontes, selecionados por Hebe Coimbra.

Poesia para todas as idades

Em 1984, Classificados poéticos trouxe como novidade situar-se na fronteira entre o referencial e o literário, o infantil e o juvenil, o verso e a prosa. Esta obra singular apresenta textos em formato de poemas, inspirados no modelo textual mais prosaico e direto possível, os anúncios classificados de jornais, obtendo por essa fusão efeitos estéticos muito interessantes, que podem agradar leitores de qualquer idade. Sua ficha catalográfica informa tratar-se de literatura infantil e infanto-juvenil, seu formato e ilustração confirmam essa classificação.

Desde seu lançamento, este livro teve bem mais de vinte edições, circulando nas escolas do Ensino Fundamental e entrando nos acervos de bibliotecas e de programas de incentivo à leitura de todo o país. Seguindo o modelo dos classificados de jornais, os poemas anunciam compras, vendas, aluguel, trocas, buscas, ofertas, perdas – tudo aparentemente muito referencial, porém o poético se instala quando o leitor constata que se quer comprar “um barco feito de vento”, vender “uma casa encantada”, alugar um bazar onde se venda “um farol em alto mar”, trocar “um fusca branco por um cavalo cor de vento”, procurar “algum lugar do planeta onde a vida seja sempre uma festa”, oferecer “um coração cheio de vento onde quem quiser pode soprar três sementes de sonho”, comunicar a perda de uma “maleta cheia de nuvens e de flores”. Do contraste entre a realidade prosaica dos anúncios de jornal e a imaginação dos seus anunciantes abre-se o espaço da poesia.
Sônia Menezes, retomando a ideia de Octavio Paz de que poesia implica participação, sem a qual o leitor não logra atingir o que ele chama de “estado poético”, assim comenta os poemas de Classificados poéticos:

Essa relação leitor/poesia estreita-se na medida em que o eu-lírico vai enumerando […] os objetos que anuncia para alugar, comprar, vender, trocar. A poetisa consegue, na articulação das imagens e na seleção das palavras, romper com a objetividade e materialidade do mundo e criar, poeticamente, impressões de leveza, pureza, juventude e doçura, enfim, um lado diferenciado do ser humano: o lado da emoção, da memória, dos afetos, das lembranças. (Menezes, 2004, p.30)

Em muitos desses classificados, meninos e meninas apresentam-se solitários ou apaixonados, inseguros ou sonhadores, idealistas ou participativos, olhando para dentro de si com a perplexidade e o maravilhamento de quem começa a descobrir o anseio amoroso. Mas esse olhar que se volta para dentro não impede que eles vejam também a realidade que os cerca, cientes dos problemas que hoje afligem o mundo. Em outras palavras, não mais se trata de um olhar de criança, mas de um olhar adolescente, que ultrapassa a limitada esfera do universo infantil.

Dois anos mais tarde, em 1986, a autora lança Fruta no ponto, que nesse mesmo ano ganhou da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil o selo “Melhor para o Jovem”. A ficha catalográfica classifica-o como infanto-juvenil, mas o teor dos poemas, a epígrafe de Drummond e mesmo o seu projeto gráfico restringem esse adjetivo, definindo esse livro como poesia juvenil.

Fruta no ponto reúne 25 poemas que vão desfiando anseios e preocupações adolescentes, como a procura por um amor (“Na multidão busco meu amor/ ainda anônimo”), a descoberta do ser amado e a expectativa que antecede esse momento de epifania (“quando te vi/ o amor era simples/[…] não pedia/ nada mais/ do que milagre/ da água nascendo”), o amor crescendo no íntimo, secreto como pérola (“só quem ama a gente/ percebe/ esse fazer delicado/ oculto aos olhos de outra/ gente”), a decepção de um amor não correspondido (“amor não correspondido/ vai virando tudo em deserto/ vai calando a voz do mundo”), o fim do amor (“Quando o amor acaba/ é como […] se o tesouro enterrado/ fosse uma caixa vazia”). Amizade, segredos, saudades, ciúmes também entram neste livro, que, ao lado de tantos temas próprios do lirismo, traz alguns momentos jocosos, como as referências culinárias em “Torta de cebola para prender namorado” e “Banho-maria”.

A ilustração da capa, um trabalho em gravura de Sara Ávila, sem definir contornos, mais sugere do que retrata. Dentro de uma espécie de moldura oval, que lembra um espelho (o narcisismo e a busca da identidade tão próprios da adolescência se insinuam no simbolismo dessa imagem), há uma fruta com seu pedúnculo, mas que também pode ser entendida como um coração e suas artérias – um coração arrancado do peito. Seria o coração ansioso e anelante do jovem leitor, pronto para a experiência amorosa, a fruta que se oferece, já no ponto de ser colhida? Maria Antonieta Antunes Cunha, que assina o texto da quarta capa, diz:

Em Fruta no ponto, a temática é o amor, no sentido mais amplo e profundo do termo – o que une as pessoas na compreensão e na generosidade […]. É por isso que a obra me parece talhada para jovens – essas pessoas especiais na sua capacidade de entrega e ânsia de diálogo, abertas a toda forma de amar.

Sem cair no pieguismo ou na obviedade, criando versos em que, segundo Antonieta, exercita “o requinte do simples”, Roseana Murray consegue equilibrar-se no estreito limite que separa a poesia para jovens daquela destinada aos adultos. Utiliza imagens densas, mas não herméticas, como pérola, deserto, nascente, vento, rio, buscadas na natureza e, por isso, compartilhadas e entendidas por todo leitor sensível. Com essas imagens compõe um conjunto equilibrado de poemas exemplares endereçados ao leitor adolescente.

Em 1992, a autora lança Receitas de olhar, uma coletânea de poemas que segue de perto a linha temática e as soluções estéticas de Fruta no ponto, direcionando-se claramente para um público leitor adolescente. Também para este livro continuam valendo as palavras que Maria Antonieta Antunes Cunha dissera sobre a linguagem da poetisa, que rejeita as soluções estéticas banais, tão frequentes em poemas infantis:

Quanto à forma, cada vez mais Roseana Murray se vem desvencilhando da rima tradicional para tirar maior efeito de assonâncias inesperadas, de novas modulações rítmicas e, sobretudo, de metáforas originadas da linguagem cotidiana.

Retomando o mote culinário de dois poemas de Fruta no ponto (sobre uma torta de cebolas e sobre o cozimento em banho-maria), a autora amarra todos os poemas do novo livro pelo formato de receitas. Não mais de bolos ou tortas, mas receitas de como lidar com as pequenas ou grandes adversidades da vida, como, entre outras, receita de se olhar no espelho, de arrumar gavetas, de abrir o coração, de espantar tristeza, de desamarrar os nós, receita contra dor de amor e, acima de tudo, receita de olhar.

Esta talvez seja a mais importante, não só por dar nome ao livro, mas por traduzir a atitude que distingue os poetas frente à vida, uma atitude de permanente curiosidade e admiração: “Nas primeiras horas da/ manhã/ desamarre o olhar/ deixe que se derrame/ sobre todas as coisas belas/ o mundo é sempre novo”. É também com esse olhar de quem vê o mundo pela primeira vez que a poetisa aconselha o leitor a se olhar no espelho: “Se olhe de frente/ de lado/ de costas […] e se veja sempre surpresa/ quem é você?”

Para arrumar gavetas, abrir o coração, superar a dor do amor e desamarrar os nós, as receitas são bem parecidas, elas propõem sempre deixar espaço para um recomeço. Ao arrumar gavetas, Roseana aconselha deixar “um espaço/ vazio/ para o que vai acontecer”; para abrir o coração, toma-se a pequena chave “de ouro e coragem”, deixando a “porta aberta para o outro/ gaveta aberta para a vida”; contra a dor do amor é inevitável chorar muito, chorar “um mar inteiro, […] o sol e a lua/ a chuva e o vento”, pois só assim será possível que “uma nova semente/ entre pela janela adentro”. Na receita de desamarrar os nós, entram todos os entraves (inclusive os representados pelo pronome nós): os nós dos sapatos, dos pés tolhidos, “os laços inúteis/ os nós que não servem mais”. A poetisa subverte o sentido desses laços dando ao poema um final suspensivo, em aberto: “desamarre o barco do cais/ os nós das janelas/ e então deixe que o vento…”

O seguinte livro que iremos aqui comentar é O mar e os sonhos, editado em 1996, quatro anos depois de Receitas de olhar. A ficha catalográfica classifica O mar e os sonhos como poesia brasileira, mas o formato e o projeto gráfico indicam pertencer ao catálogo infantil da Editora. Portanto, ainda que explicitamente não se rotule como poesia juvenil ou infantil, o livro mantém essa ambiguidade em relação ao seu leitor potencial, dada pelo contraste entre formato e linguagem. Isso também pode ser constatado em outros livros da autora. A dicção estetizada dos poemas tem seu contraponto também estético na linguagem pictórica das ilustrações, ambas distanciando-se das facilitações de leitura próprias do texto infantil.

Este livro tem ilustrações de Elvira Vigna, que já havia ilustrado Receitas de olhar com imagens não figurativas, manchas difusas e coloridas sobre o fundo branco do papel, compondo o que se convenciona chamar de arte abstrata. A técnica usada por Elvira Vigna na ilustração de O mar e os sonhos ainda parece ser a mesma de Receitas de olhar, mas neste novo livro o estilo tende para uma representação mais impressionista do que abstrata. Nas manchas de tinta podem distinguir-se imagens do universo marinho, como gaivotas, barcos, peixes, ondas, espumas. Marinhas também são as cores, em que predominam os tons de verde e azul, com incursões das cores do sol e do céu em algumas pranchas.

De contornos indefinidos, as imagens pintam o cenário em traços rápidos, sem contornos, não mais que impressões, em perfeita sintonia com os poemas de Roseana, também visões fugazes e fugidias de cenas mais sugeridas do que descritas. Observe-se, por exemplo, como é retratado um pescador fabricando artesanalmente sua rede. Não é a fidelidade ao objeto descrito que prevalece, mas as impressões que a cena provoca no observador:

As mãos são ágeis
como borboletas voando
em mágica dança.
As mãos são tão ágeis
tecendo a teia
que parecem separadas
do corpo.

Às vezes os breves poemas são entremeados de imagens simbólicas ou míticas: no ar, sobre o mar tempestuoso, “galopam cavalos de fogo”; o mar “faz e desfaz/ seu sinuoso jardim”; cavalos marinhos se movem “nos labirintos do mar”; o oceano revela seus estranhos habitantes, “Netuno e seu tridente/ sereias e serpentes/ devoradoras de homens”; evoca-se, ainda, o continente de Atlântida, com todo seu peso simbólico de paraíso perdido.

Pelos breves poemas de Roseana também desfilam personagens da tradição popular e da literatura, como Ofélia, Robinson Crusoé, Sexta-Feira, Aladim, o Holandês Voador, os piratas do Caribe, instigando o leitor a ir além do texto, a confrontar os versos que lê com o seu próprio repertório de conhecimento e de leituras. Sem dúvida, essa parceria exigida pela poetisa pressupõe um leitor capaz de abstrações, confrontos, avaliações, ou seja, um leitor que já ultrapassou a fronteira da infância. Faz sentido, portanto, a ficha catalográfica não haver restringido o destinatário deste belo livro.
Em 2001, Roseana Murray lança Caminhos da magia, um livro que tem um projeto gráfico primoroso e muito original, com ilustrações de Marcelo Ribeiro a partir de desenhos de Leonardo da Vinci, parte de um precioso acervo descoberto em Madri em 1965. Mais uma vez a ficha catalográfica omite a qual leitor a obra se destina, anotando somente o gênero: poesia, poesia brasileira. E novamente é a sua editoração que indica isso ao incluir um suplemento de leitura com sugestões de trabalho para o professor do Ensino Fundamental (5ª. à 8ª. séries, ou seja, pré-adolescentes e adolescentes) dentro dos temas transversais propostos pelos PCN.

Ainda assim, ao definir seu corpus de estudo, Sônia Menezes preferiu incluir Caminhos da magia entre as obras destinadas ao público adulto (v. Menezes, 2004, p.11), justificando serem muito tênues os indicativos de faixa de leitor no conjunto da obra da autora:

O cotidiano, transformado em poesia, resgata a vontade, o querer e a busca, essenciais ao viver. Apenas diferenças muito sutis no tratamento do tema permitem ao mercado editorial definir o público leitor, mas os poemas remetem sempre à eterna busca das realizações, da felicidade e do outro. (Menezes, 2004, p.19)

No caso deste livro, acreditamos ser mais adequada uma opção intermediária, a do público juvenil, pois os poemas, com suas alusões multiculturais parecem não estar ao alcance da bagagem ainda leve dos alunos do 5º. ou 6º. anos do Ensino Fundamental como a ficha prevê, mas não são tão cifrados que requeiram leitores já adultos.

É no limiar que separa a infância da maturidade que o apelo do mistério se faz mais forte. Os adolescentes têm uma curiosidade insaciável sobre o destino que os aguarda, sobre os amores que encontrarão, a carreira profissional que lhes dará satisfação – tudo que ainda estiver envolto nas brumas do futuro – e por isso são fortemente atraídos pelos mistérios da magia.
Magda Frediani Martins, autora do folheto didático incluído na edição, explicita seu público-alvo ao declarar: “dedicando este livro aos adolescentes e jovens, a autora espera que a efervescência deles possa ser transformada em energia criativa”. Ela assim resume o conteúdo do livro:

Em Caminhos da magia, Roseana Murray fala-nos, em linguagem literária, sobre essa eterna procura pelos segredos do universo, descrevendo algumas das formas que foram e continuam sendo usadas pelos seres humanos na busca do conhecimento. Há poemas sobre a alquimia, utilizada para a transmutação dos elementos; sobre os jogos adivinhatórios, como as runas e o tarô; sobre a intuição, poder que temos de ouvir “a voz de dentro”; sobre a mandala, “círculo mágico” usado na meditação; sobre os quatro elementos…

Quer dizer, os poemas deste livro lidam com o mistério, ou melhor, com a magia – os instrumentos e artifícios que os homens inventam para tentar decifrar os mistérios do mundo. São 24 textos que passeiam por elementos de vários tempos e culturas, falando de entidades mágicas: anjos, ciganas, bruxas, gatos, duendes, elfos; e também das chaves de acesso a esse mundo oculto: a alquimia, as runas, os números, as linhas da mão, as cartas de tarô, as mandalas, o I Ching, os cristais. São poemas em torno dos limites humanos que nos constringem e da ânsia que temos de ultrapassá-los, de conhecer “o lado de lá”.

Diante de uma tal temática, parece paradoxal a escolha da ilustração haver recaído sobre desenhos de maquinismos e engrenagens. Qual a razão disso? No texto da quarta capa, a também escritora Nilma Gonçalves Lacerda, responsável pela concepção editorial de Caminhos da magia, assim justifica a opção pelos projetos de Leonardo da Vinci, esse homem admirável que “fazia o presente e vivia o futuro”:

Este gênio, para quem é muito íntima a relação entre ciência e poesia, considerava a linguagem uma forma de construir o mundo tão sólida e eficaz quanto as roldanas, pêndulos e mecanismos que concebia. Resolvemos, por isso, unir estes poemas de Roseana Murray aos desenhos deste espírito do Renascimento italiano.

Essa surpreendente conjunção de poesia e mecânica no projeto gráfico deste livro também pode ser vista como uma alegoria. A poesia como produto da mente intuitiva e emocional, de um lado, e os minuciosos projetos de maquinismos, resultado do esforço racional e lógico, de outro, parecem sugerir que para chegar às respostas dos mistérios maiores é preciso que o homem se desenvolva de forma plena, que busque a integração entre coração e mente, entre sentimento e razão. Essa íntima relação já é antecipada ao leitor no poema “Números”, que inicia com uma indagação: “Como converter números em palavras?/ Qual a equação que transforma/ números em poesia?”. Com os poemas de Caminhos da magia Roseana Murray parece ter conseguido isso, num verdadeiro processo de alquimia poética.

Em 2002, Hebe Coimbra organizou a antologia Poesia essencial, reunindo poemas de quatro livros para adultos, dois esgotados e dois inéditos: Paredes vazadas (Memórias Futuras, 1988), Pássaros do absurdo (Editora Tchê, 1990), Caravana (1994) e As cidades e a casa (1998). Da comparação entre a obra mais voltada para o público infantil ou juvenil e esta antologia, cujos poemas harmonizam-se tão bem que nem parece serem originários de fontes diversas, o leitor pode perceber semelhanças e diferenças.

A semelhança maior decorre da linguagem que, como já fizera notar Maria Antonieta Antunes Cunha em relação a Fruta no ponto, traz “metáforas originadas da linguagem cotidiana”. Predominam imagens impregnadas de valor simbólico buscadas na paisagem natural ou na paisagem modificada pelo homem. São as árvores e os ninhos, os gatos, os pássaros e cavalos, a lua e as estrelas, mas, sobretudo, as águas, as nuvens e o vento, como bem notou Sônia Menezes em seu mencionado estudo. De presença forte e apelo marcante, a paisagem marinha se impõe na poética de Roseana: barcos, navios, farol, oceano, ondas, espumas, peixes e redes são imagens recorrentes, em que a ação do homem e da natureza se completam. Criada pela mão humana, a casa, com suas possibilidades de abrigo ou esconderijo, com seus poços e gavetas, ou com suas vias de acesso, suas portas e janelas, é presença insistente na obra desta poetisa. Costumam ser casas abertas, prontas para a troca com o outro, suas portas, janelas e gavetas nunca estão definitivamente cerradas, antes são mostradas em movimento de vaivém, seja para entrar ou sair, para guardar ou ofertar.
Se as imagens são as mesmas, percebe-se que há uma concisão maior na linguagem, que se mostra mais elíptica, deixando mais hiatos para o leitor preencher. Nota-se também um afastamento do plano da realidade concreta para a abstração, para o domínio do alegórico. Isso fica evidente, por exemplo, quando se compara “A rede”, de O mar e os sonhos, há pouco transcrita, com “Rede”, nesta antologia:

que a poesia
apanhe apenas o invisível
em sua rede de nuvens e vento
por exemplo
o leve lamento que atravessa a casa
quando o passado invade
tudo de repente
e com sua teia transparente
paralisa o gesto
no meio do movimento
que a poesia diga
o que não pode ser dito
pedra e sentimento

Como se vê, a rede se desmaterializa, não é tecida de fios nem pesca peixes; é poesia feita de nuvem e vento e captura coisas também impalpáveis, os lamentos do passado. Note-se, ainda, neste e em outros poemas de Poesia essencial, como o tom se altera na dicção poética: o eu-lírico não adota mais uma postura esperançosa e confiante de quem tem os olhos postos no futuro e nele acredita, mas se deixa levar por uma certa melancolia, um desencanto de quem olha para o passado, considera sua história pessoal e reconhece que a vida às vezes oferece seu travo amargo. Essa diferença de tom lembra a dualidade das Canções de William Blake (1757-1827), Songs of innocence e Songs of experience, embora sem os ressentimentos do poeta inglês.

Em 2011, a mesma Hebe Coimbra organiza Poemas para ler na escola, uma antologia reunindo 109 poemas da autora, produzidos desde 1984 até 2010. Nos mesmos moldes de Poesia essencial, traz poemas curtos e densos, sem facilitações, mas também sem hermetismo. O projeto gráfico é sóbrio, apontando para um leitor maduro. A única indicação que remete a um público adolescente é o título, tomado à coleção em que se inclui: Para ler na escola, que congrega essencialmente autores da literatura para adultos. Infere-se, pois, que se pensou também na escola noturna, nas turmas de EJA, nos adultos que retomam seus estudos tardiamente.

A organizadora faz anteceder a seleção de poemas por uma Apresentação, em que se dirige diretamente ao leitor, revelando-lhe, de modo sedutor e didático, os segredos da dicção poética, fazendo-lhe um convite irrecusável à leitura:

Diante de uma obra que nos emociona, seja um poema, um jardim, uma música ou uma dança, é o conjunto, o todo que primeiro nos captura. Mas, uma vez capturados, tendemos a afinar nosso olhar sobre ela, a curti-la com mais vagar, e acabamos descobrindo o detalhe, as artes e artimanhas do autor, assim como seus temas e preocupações recorrentes, sua visão de mundo. Afinar o olhar… É exatamente isso que você vai fazer agora. (Coimbra, apud Murray, 2011, p.16)

Poesia essencial e Poemas para ler na escola são livros juvenis? Sim, mas não só. São livros que satisfazem plenamente jovens e adultos, todos que sabem apreciar a linguagem poética que, mais do que carrear um sentido, chama a atenção sobre si mesma, mostra-se em sua beleza de alusões e subentendidos, dando forma aos sentimentos indefinidos que o leitor não se sente capaz de ele mesmo expressar. Roseana Murray tem esse condão de falar pelo leitor. Para finalizar, transcrevemos o poema “Gestos”, de Poesia essencial, um texto com o qual por certo todo leitor adolescente é capaz de se identificar:

com que medida
se mede o amor?
com quantas luas
ou sóis oceanos
tormentas
com quantos pequenos
ou quase imperceptíveis gestos?
perfumar a casa
fazer a cama
cortar o pão
rearrumar os sonhos
pronuncio o teu nome
e de muito longe
um oásis me habita
e o ar estremece
povoado de anjos

Referências
BOSI, Alfredo. Sobre alguns modos de ler poesia: memórias e reflexões. In: BOSI, Alfredo (Org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2001, p.7-48.
MENEZES, Sônia Maria dos Santos. De água e de ar: a poesia de Roseana Murray. 2004. Dissertação (Mestrado) – UFG, Goiânia, 2004.
MURRAY, Roseana. Classificados poéticos. Ilustrações de Paula Saldanha. Belo Horizonte: Miguilim, 1984.
MURRAY, Roseana. Fruta no ponto. Ilustrações de Sara Ávila. São Paulo: FTD, 1986.
MURRAY, Roseana. Receitas de olhar. Ilustrações de Elvira Vigna. São Paulo: FTD, 1992.
MURRAY, Roseana. O mar e os sonhos. Ilustrações de Elvira Vigna. Belo Horizonte: Miguilim, 1996.
MURRAY, Roseana. Caminhos da magia. Ilustrações de Marcelo Ribeiro sobre desenhos de Leonardo da Vinci. São Paulo: DCL, 2001.
MURRAY, Roseana. Poesia essencial. Organização de Hebe Coimbra. Rio de Janeiro: Manati, 2002.
MURRAY, Roseana. Poemas para ler na escola. Organização de Hebe Coimbra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
TURCHI, Maria Zaira. Tendências da poesia infanto-juvenil brasileira. In: MELLO, A.; TURCHI, M.Z.; SILVA, V.M.T. Literatura infanto-juvenil: prosa & poesia. Goiânia: Editora da UFG, 1995, p.155-167.
TURCHI, Maria Zaira. O estatuto da arte na literatura infantil e juvenil. In: TURCHI, M.Z.; SILVA, V.M.T. (Orgs.). Literatura infanto-juvenil: leituras críticas. Goiânia: Editora da UFG, 2002, p.23-31.
SILVA, Vera Maria T. Nos domínios da sensibilidade. In: Leitura literária & outras leituras: impasses e alternativas no trabalho do professor. Belo Horizonte: RHJ, 2009, p.95-126.

Vera Tietzmann
Professora aposentada da UFG