A expressividade da palavra e da imagem no livro
O traço e a traça, de Roseana Murray (Livro selecionado para o PNBE 2012 )
Roseana,
Os versos do livro O traço e a traça, de Roseana Murray, apresentam a história de traças que comiam os traços das letras dos livros. A autora tem mais de 40 títulos publicados para o público infantil, mas a qualidade literária de seus textos não delimita idade e demonstra atemporalidade, interessando também àqueles para os quais não foram inicialmente pretendidos. Recebeu prêmios concedidos pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), que potencializam sua importância no contexto da literatura infantojuvenil contemporânea. Elma, a ilustradora, é uma “artesã de ternuras”, como diz em seu blog. Além desse, já ilustrou livros de Tatiana Belinky (Acalantos e encantos, Ática, 2009), Rosana Rios (Poesia todo dia, Ave-Maria, 2009) e André Neves (Rabiscos para dias rurais, Cortez, 2009), e tem escrito e ilustrado suas próprias histórias, como A princesa Anastácia (DCL, 2006).
O primeiro papel que uma traça comeu apresentava a história de uma cotovia, cujo canto não estava descrito, mas sim seus sonhos feitos de terra e ar. De tanta indigestão essa traça morreu e deu espaço para outra, que comeu uma folha onde havia a história de Maria, que, por sua vez, tinha mania de fazer coleção: “Catava bicho, catava folha, / catava tudo que é porcaria, / caco de pedra, terra macia” (p. 18). A traça, no entanto, comeu toda a coleção de Maria e “acabou igual a outra traça, / bem morta no chão” (p. 21). A morte desta fez entrar em cena mais uma traça, porém em outra história, na de João. Esse momento nos relata que, depois de ter matado a traça com o dedo polegar, João começou a andar pelo livro “assim como quem / não quer nada” (p. 28) até encontrar Maria, “sentada / num canto do pé da página” (p. 28). Com isso, por acharem que este livro já estava “muito chato” (p. 29), os dois decidem ir para outro, a fim de viverem muitas aventuras, como “cabra-cega, esconde-esconde, / pêra-uva-ou-maçã” (p. 30). Esse término concedido à história propicia ao leitor, por um lado, o diálogo entre este texto e todos os outros que na leitura o antecederam, e, por outro, leva-o a imaginar o que podem contar essas novas aventuras em outro livro.
O texto poético apresenta muitas qualidades estéticas. A primeira delas refere-se à musicalidade, revelada pelas rimas “havia”, “mania”, “porcaria” e “macia” (p. 18), pelas aliterações nas palavras “TRaÇo” e “TRaÇa” (p. 4, 16), “CanTo” e “CoTovia” (p. 10), pela assonância da vogal “A” em “prAçA” e “trAçA” (p. 13), além do recurso muito frequente em poesias como a repetição “Tinha mais livro, / tinha mais traço / e tinha outra traça, comendo outra folha” (p. 16). Essa reiteração contribui para a ampliação do sentido do texto, uma vez que são somados mais elementos àqueles que já faziam parte da história, como livro, traço, traça e folha de papel. Com isso, o leitor sabe que mesmo com a morte de uma traça de tanto comer, terá a possibilidade de ler novos fatos com indícios parecidos. Uma segunda característica pode ser explicada pela função que o texto de imagem assume ao dialogar com o texto verbal e completá-lo. Um claro exemplo é o verso terminado com reticências (p. 25) e preenchido pela onomatopeia “nhoc, nhoc, nhoc” (p. 25), reproduzida em ponto de cruz sobre o étamine, para imitar o barulho que João ouviu sair de seu segredo guardado debaixo da cama. Outra qualidade, ainda, pode ser explicada pela plurissignificação do texto literário evidente em “Se a traça soubesse / que num papel cabe / mais mundo / do que gente numa praça / será que desistia?” (p. 13), versos que levam o leitor a participar da leitura e a criar imagens de que tudo o que existe ao seu redor Ipotesi, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 171 – 172, jul./dez. 2009 172 pode ser assunto a ser tratado nos livros que a traça comia e, consequentemente, por ser diversificado e em grande quantidade, ela não aguentaria. O efeito de alegria é constituído pelo jogo de palavras e de figuras, ao utilizar recursos linguísticos como os dois pontos nos versos: “Mas a traça não sabia / e foi comendo tudo, / o ninho, o sol, o canto, / os sonhos da cotovia […] e […] acabou desse jeito:” (p. 14). Sem texto verbal para terminar a frase, o leitor precisa imaginar a forma como a traça ficou depois de comer muito ou pode ainda interpretar a ilustração que demonstra uma das possibilidades de sentido para o texto que, simbolicamente, possibilita fazer escolhas de acordo com suas experiências de leitura anteriores e com seus conhecimentos prévios. Ademais, contribuem para a criação desse efeito as imagens que reproduzem tecidos coloridos bordados sobre étamine, lançando ao leitor a vivência de texto literário como uma trama de fios, na qual palavras e imagens se entrelaçam e formam novos significados.
Por esses motivos, o livro propicia uma interação lúdica do leitor com a linguagem poética, promovendo a expressão de seus pensamentos e de seus sentimentos, além de possibilitar a visualização da metáfora do texto como um tecido, tanto por meio da organização das palavras no texto-verbal quanto pela composição do texto não-verbal. Outra metáfora que emerge desta produção literária é a do leitor voraz, ou seja, do leitor como um “devorador de livros”, tendo em vista a referência feita à traça que come todos os traços das letras.
O poema não menciona a história de João e Maria, mas há uma alusão à narrativa tão conhecida pelas crianças, nutrindo o intertexto tematizado não somente pelo nome das personagens, mas também pela busca do caminho de casa, presente no conto, e pela procura de participação em novos traços do papel, inerente ao texto da escritora.
Os recursos desses versos de Murray e das ilustrações de Elma garantem a expressividade do leitor mirim. Assim, o texto atinge o estatuto da arte por meio da estilização da linguagem verbal e do primoroso projeto gráfico editorial, levando a criança a compreender o mundo a sua volta e desafiando-a a completar os vazios ali existentes. A obra contribui, por fim, para a ampliação da produção cultural de qualidade para crianças e pode ser lida por todos aqueles que buscam leituras inovadoras e novas experiências estéticas.
Nota explicativa * Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá. Professora da Faculdade de Presidente Prudente (UNIESP – FAPEPE) e líder do grupo de pesquisa “Formação de professores e as relações entre as práticas educativas em leituras, literatura e avaliação do texto literário”.
Berta Lúcia Tagliari Feba