Sabemos que o metrônomo é um instrumento que marca o ritmo das músicas. O seu funcionamento é construído para dar suporte a mensuração da passagem do tempo, permite que a música flua com maior organização e expressividade e assim, tempo e música se misturam metaforicamente a tecer a poética de Roseana que se pergunta sobre essa costura de tênues fios:
“A linha”
“De onde vem / essa linha fina / de costurar poesia? / De qual oriente? / De qual mil e uma / noites, / de qual dia? / De onde a seda / dessa linha / que borda, / que transborda / do papel / para o mar / e o céu? / De que estrela / desconhecida, / de que bicho / da seda?”
Abordando temas densos como a solidão, a morte, a angústia, a memória e as perdas, os poemas se sustentam em refinado jogo de linguagem que transparece apenas para revelar o que é simples e delicado no cotidiano que está em todas as coisas, sobretudo no silêncio. Este, visto não somente como necessário à apreensão das verdades da vida, mas, por outro lado, quando precisa ser quebrado. Um ouvido no silêncio e outro no verbo portanto.
“Noz”
“E se o teu silêncio / se partisse feito uma noz, / um cálice / e se fizesse música, / e rumor de um rio, / de um riso, / de passos sobre folhas / secas, / de fio de luz / esgarçando a noite, / ou chuva. / E se o teu silêncio / se abrisse / e desvendasse / uma escrita tão antiga, / perdida?”
A autora segue despertando verdadeiras epifanias, veja-se a profundidade existencial de um poema como: “O que te espera”
“Ancorado no cais / da palavra / um barco te espera, / um rio te espera, / no azul da montanha, / um oásis te espera / na orla do deserto, / uma miragem / te espera / na superfície da vigília, / a vida te espera, / o assombro, / o espanto”
E sempre um retorno ao fundamental da vida. “As mãos” nos faz relembrar o pensamento de Octavio Paz. “As palavras chegam e se juntam sem que ninguém as chame; e essas reuniões e separações […] são regidas por uma ordem de afinidades e repulsões. As palavras se juntam e se separam atendendo a certos princípios rítmicos”.
“As mãos querem / música / quando abrem / a caixa da vida / para que a noite / escreva estrelas / cadentes / e o dia o seu trigo, / seus girassóis. / As mãos querem / a água do poço / das palavras / que voam”.
Em outro poema, “Pasto”, a poeta cria por analogia. Seu modelo é o ritmo que move o poema, palavras em estado de abundância verbal, corrente rítmica que se manifesta em imagens e não em conceitos.
“Em meu pasto / de palavras, / por debaixo / da terra, / onde correm / profundos / os veios de água, / os veios do que / pode e não pode / ser dito, / onde uma luz / às vezes sombra / acende a música / oculta dos sentidos, / cavalos se aquietam / diante do abismo, / onde caem as horas”
E mais uma vez, e aprofundando o que já fora dito, o poema “O rio invisível” revela o talento da autora que se volta para perceber a poesia contida desde um simples rio, ao sol.
“A musica do rio / invisível, / que canta / conduzindo / os navegantes, / os sem rumo, / os perdidos, / os maltrapilhos. / Há que ouvir / essa voz distante, / para sair / do labirinto. / Há que buscar / as setas / que apontam / o nome: / aquele escrito / com o sol. / Só então / a alma pode / voar e levar / o corpo / e mesmo que a luz / desfaça suas asas, / será possível enxergar / na escuridão
Uma obra como “Poemas para metrônomo e vento” ajuda-nos a ascender a novas fases de consciência. Inebria-nos com o cântico das grandes leis da vida, nos faz voar, leve, rápido, distilando intelectualidade mas, num sentido de orientação. Desperta afinal, ressonâncias noutras almas e isso já é muito. O mundo hoje, mais do que nunca tem necessidade destas revelações íntimas. Precisa destas afirmações de espiritualidade, necessita de quem grite, em tempos de materialismo e egoísmo desenfreados, a grande palavra da alma; de quem dê, em tempos de apatia e indiferença, exemplo de fé; de quem repita, as grandes verdades esquecidas. Confiram detidamente isto, e outras coisas bem próximas, em poemas como: “Geografia”, “Para caber no corpo”, “Nas paredes”, “A chave”, “Voo”, “Viajante” e finalmente “Vazio”, que transcrevemos:
“Antes quase no começo / do mundo, / quando as estrelas / diziam o caminho / e os pássaros eram / a fronteira entre / o céu e a terra, / as palavras ainda / buscavam a sua música / e os pés deixavam / a marca indelével / dos que passavam / em busca do que não / tinha nome. / Hoje, o vazio do que / está sempre abarrotado / de tudo / é o abismo onde caímos / todos os dias. / As palavras já não / se entrelaçam, / são ruídos roucos / e inúteis. / Há que reinventar / o tempo. / Largo e liso / feito um lago. / Espelho do que / um dia fomos”.
Livro: Poemas para metrônomo e vento – Poesias de Roseana Murray
Editora Penalux, Guaratinguetá SP, 2018, 110 p.
ISBN: 978-85-5833-323-8