Prof. Dr. Rafael Santana

Habitar os olhos de um gato

Rafael Santana – UFRJ

[…]
Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux;
Retiens le griffe de ta patte,
Et laisse-moi plonger dan tes beaux yeux,
Mêlés de métal et d’agate.
[…]
(Charles Baudelaire)

Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama […]

És feliz porque és assim,
Todo nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
(Fernando Pessoa)

Habitar os olhos de um gato não é, nunca foi, e jamais será uma experiência da ordem do simplório. Porque para que um ser humano logre viver nos globos oculares de um felino faz-se inicialmente necessário que ele, enquanto sujeito, anele tornar-se agente de perscrutação da sua própria sombra, no intento de vislumbrar, quiçá, a sua claridade interior. Gatos são animais independentes, misteriosos, místicos: luz e trevas que emanam de corpos que se movimentam em ziguezague, lascivos e inebriantes, em estésicas dobras de linguagem. Não é por acaso que eles tanto fascinaram – e não cessam de fascinar – os poetas! Enfrentar os nossos gatos internos é, com efeito, uma tentativa de autoconhecimento que o poema de Fernando Pessoa, inscrito na epígrafe, bem sinaliza. Ou, nas palavras mais contemporâneas de Nise da Silveira, “O gato é um ser essencialmente livre e essa liberdade desafia o homem”. Eis a reflexão de abertura do livro Gatos, publicado a quatro mãos por Roseana Murray e William Amorim pela Editora Viegas, de São Luís do Maranhão, em 2019.

Anunciado, pois, o desafio de liberdade expresso na epígrafe de Nise da Silveira, os poemas de Gatos são precedidos ainda de uma belíssima apresentação de Arlete Nogueira da Cruz, que nos dá a ler um texto enxuto e de preciosa seleção vocabular. Dessa apresentação, recorto estrategicamente um sintagma bastante interessante, que a autora utiliza para se referir ao assomo dos felinos aquando do seu desejo de aconchego junto aos homens: aproximação orbital. Elásticos, os gatos achegam-se devagarinho, enroscam-se por entre as nossas pernas, deixam pouco a pouco que toquemos os seus corpos mornos e macios. Magnéticos, os seus olhos de metal e ágata se cruzam com os nossos e nos impõem o desafio: decifra-me / decifra-te.

Gatos é precedido ainda de mais dois paratextos: o primeiro, de Roseana Murray; o segundo, de William Amorim. Roseana Murray alude à metáfora do jogo para elucidar o processo de construção dos poemas: fios, tecidos, sedas, tafetás ora lançados por ela, ora por William Amorim, cada um com a sua linha na agulha, prontos a contar, a recontar e a acrescentar um novo ponto. No fundo a pergunta e o repto lançados por Roseana Murray ao final do seu pequeno paratexto – “Os gatos são decifráveis? Leia o livro para saber!” – já abrem o filão de pensamento de William Amorim que, como psicanalista, incita-nos à surpresa da descoberta de um pouco mais de nós mesmos no enfrentamento dos nossos gatos de linguagem. Por outros termos, é como se o corpo do gato ativasse um fio capaz de alinhavar o texto em palavras: o gato é um devir; é uma linguagem desejante da sua escrita; linguagem obscura que, quando executada, se torna solar não porque decifrada, mas porque transformada em poesia, ou melhor, naquilo que se desvela para tornar a velar… Sobre esse tema específico, considero paradigmáticos estes dois poemas:

De madrugada,
quando os gatos que te habitam
podem sair do seu coração
e andar pela casa sem medo,
dormes o sono dos justos
como se tua última noite.
Mas quando os gatos que te habitam
retornam cansados
ao teu coração de sal e sol,
andas pelas ruas insone. (AMORIM, 2019, p.29)

E William Amorim prossegue:

Mais silencioso que espelho,
Mais aventureiro que o tempo,
Mais indecifrável que esfinge.
Gato, dorso de solidão e carícia,
A liberdade é teu segredo. (AMORIM, 2019, p.62)

Na página 56, a pergunta inicial de Roseana Murray é reiterada em poema: “Será que dá para decifrar / um gato / […] em língua humana?”. Ora, um gato não pode ser decifrado em língua humana e ambos os autores acabam por responder essa questão. A linguagem não dá conta do real; é dele apenas uma ínfima versão… Todavia, o sujeito-gato que se dramatiza, isto é, que no solilóquio de um discurso amoroso (e não nos esqueçamos de que a experiência do amor requer sempre a luz e a sombra) o sujeito-gato, repito, absorto nas dores e nas delícias de falar de si mesmo ou, se quisermos, de amar a si mesmo, de converter-se ele próprio em ser de linguagem, vê-se de repente assaltado por múltiplas lufadas de pensamento capazes de desviar o seu olhar, mudando, dessa feita, a sua relação com o mundo; alterando, enfim, a sua percepção das ocorrências. O ser e a linguagem não são decifráveis e é por isso que existe uma história da literatura, da arte, da filosofia, da psicologia. Significativamente, deixar que os nossos gatos interiores saiam da sombra e venham à luz é, reitero, uma busca de autoconhecimento.

De fato, ao longo daquilo que se conhece por História da Humanidade, nunca deixamos de repetir a todo momento o eco da inscrição à porta do templo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. E assim como as explicações do oráculo eram, no fundo, a devolução de um outro enigma, ao tocar o limite da linguagem o homem que se autoanalisa é também ele aquele que desvela para tornar a velar. Na repetição desse processo, joga-se infinitamente o jogo da Esfinge: “Decifra-me ou te devoro”!

O complexo de Édipo, motor da psicanálise nascente nos finais do século XIX, aduz, de forma muitíssimo interessante, o que é esse movimento de desvelar para velar outra vez, lusco-fusco, contraste entre claridade e escuridão. Afinal, Freud não explica!!! Ao contrário, Freud e Lacan permitem ao sujeito cognoscente a experiência a um só tempo gozosa e dolorosa do discurso, palavra advinda do termo latino dis-cursus, que é etimologicamente a ação de percorrer diversos lados, de transitar por distintos caminhos. E para tanto é preciso saber estabelecer uma paragem na cronologia do tempo; promover uma desordem das coisas para, quem sabe, tornar-se capaz de adentrar, de modo muito labiríntico, os olhos de um gato:

No mundo dos gatos
a música é lânguida
e lenta,
a terra gira
mais devagar,
os caminhos
são sinuosos
e oblíquos.
No mundo dos humanos
tic-tac.

Parceria prodigiosa entre Roseana Murray, William Amorim e Geraldo Frazão, Gatos conta ainda com um belíssimo trabalho de ilustração deste último, de modo que uma leitura paralela entre os poemas e as imagens permite ao leitor atento o exercício tanto mais encantatório quanto prazeroso da ekphrasis. Para aquele que deseja enfrentar os seus gatos interiores e buscar a sua luz, isto é, o seu estado de liberdade, a leitura de Gatos será decerto uma senda deleitosa!

Prof. Dr. Rafael Santana
Professor de Literatura Portuguesa
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Departamento de Letras Vernáculas