O voo além da superfície, em Poemas para metrônomo e vento

Alexandra Vieira de Almeida – Escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ)

No novo livro de poemas de Roseana Murray, Poemas para metrônomo e vento (Penalux, 2018), temos um universo semântico que dá coerência à obra e à proposta do livro que é medir o tempo pelas cordas da poesia. O metrônomo, instrumento que mede o andamento musical, juntamente com o vento, este elemento sutil da natureza que por vezes nos arrasta com sua fúria sonora, levam a poeta a dialogar com a progressão, com o ritmo das coisas. Palavras como “luz”, “estrelas”, “azul”, “rio”, “asas”, “sol”, “sombra”, “água”, “fio”, “linha”, “voo” tecem uma rede constante em sua poética. É forte a presença da natureza que se mostra como mosaico temporal das mudanças entre o eu e o mundo. Em Murray, temos o tempo da construção, da arquitetura poética, o tempo de fiação e criação da poiesis. Tudo é ritmo nos seus versos musicais. A aproximação entre poesia e música a partir deste elemento que é o ritmo dá o tom maior no livro desta poeta excepcional. Da mesma forma se dá o paralelismo entre natureza e arte/cultura através da música. Os sons da natureza, deste vento que assovia por entre as linhas dos seus poemas revelam as aproximações entre os dons da natureza e o tempo da poesia. O vento é a força da natureza que espalha/expande tudo e espelha o tempo.

A cor azul é central no seu livro. O azul indica imaterialidade, um ir além, um transcender a mera forma. Neste sentido, o ar é elemento importante ao se reportar ao mito de Dédalo e seu filho Ícaro. Dédalo era prisioneiro de Minos e para fugir com seu filho da prisão constrói asas, como exímio arquiteto. Só que ele voa numa altura moderada enquanto Ícaro, por sua soberba, vai além do normal, tendo a cera que prendia as suas asas derretidas pelo sol, levando-o à morte. No poema “O rio invisível”, Roseana Murray tem uma conversa intertextual com este mito. Vejamos: “A música do rio/invisível,/que canta/conduzindo/os navegantes,/os sem rumo,/os perdidos,/os maltrapilhos//Há que ouvir/essa voz distante,/para sair do labirinto.//Há que buscar/as setas/que apontam/o nome:/aquele escrito/com sol.//Só então/a alma pode voar e levar/o corpo/e mesmo que a luz/desfaça suas asas,/será possível enxergar/na escuridão”. Apesar do voo deste imaginário que vai além da forma, Murray tem uma postura de enxergar além do mero cotidiano, com uma poesia que revela o sublime através das asas das palavras, como “sementes aladas”, sua poética inaugura conceitos e chaves para se entender a vida e ultrapassar a mesmice cotidiana.
No poema que abre o livro, temos o simbolismo das asas: “Se não temos asas,/temos palavras,/para arrumar o caos/em camadas de azul/e desejos”. Sendo a cor mais sutil da chama, o azul nos apresenta a cor do infinito, àquela observação que ultrapassa o meramente ótico para se fazer o sonho lírico. Algo que se expande de sua ambiência de ser simplesmente visão para se fincar nas entrelinhas do olhar, os pontos vazios que dialogam com o caráter fantasmático do poético que não se quer uma convenção. Em “Os mortos”, temos: “Os mortos/se alimentam/da nossa memória,/sua comida/é o fiar contínuo/dos nossos pensamentos”. Este caráter espectral do poético lança uma rede invisível tecida pela intangibilidade das coisas, paradoxalmente. Murray nos fala dos abismos que as palavras contêm, os seus versos são permeados pelo silêncio da escuta, aquele silenciar que é o tempo de maturação da poesia, o tempo também de degustação do leitor que vai também além do que é visível aos olhos.

No livro exemplar sobre os gêneros literários, Conceitos fundamentais da poética, de Emil Staiger, encontramos a recordação lírica, que não é apenas o ingressar do mundo no sujeito. É muito mais do que isso. É o “um-no-outro”, “de modo que se poderia dizer indiferentemente: o poeta recorda a natureza, ou a natureza recorda o poeta”. Neste sentido há uma fusão entre os dois planos, fazendo do sujeito um objeto e deste um avizinhar-se do humano. Vejamos o belíssimo poema “Caminhar sobre as águas”: “Levo o mar/dentro dos olhos/como quem leva/uma fruta na bolsa/variações sobre/todos os tons/do azul.”. Dessa forma, encontramos nos poemas de Murray, uma música na natureza, uma certa culturalização do ambiente, em que noções abstratas como o tempo dançam nos mares da realidade natural. E também há uma certa naturalização da arte, percebendo-se entre ambas, cultura e natureza, os intercâmbios possíveis. Assim temos o voo do poético nesta obra fantástica de Roseana: “nessa cor, nessa música líquida”.

Além da intertextualidade que se mostra em seus versos, temos a metalinguagem mesclada com ela num mesmo poema. Vejamos o diálogo com João Cabral de Melo Neto, dando novas asas à poesia dele: “Um verso simples,/ sozinho,/não tece a manhã:/é preciso um galo/e um sol,/nas mãos um sonho/ainda sujo de estrelas,/ainda sujo de infinito./Um verso precisa/de outro verso,/para que seu tecido/vire barco.” É preciso que a intertextualidade e a metalinguagem estejam de mãos dadas para que os efeitos e desdobramentos do poético se enalteçam. E isso Roseana Murray faz de forma maravilhosa, dando tons vibrantes e particulares para outros autores cotejados. O fascínio que Murray tem pelas palavras necessárias e essenciais para a construção de sua rica urdidura lírica faz de seu livro algo luminoso para a verdadeira poesia que deve se pautar pelo mais importante e não se perder em vias de mão única, mas pluralizar os códigos linguísticos por um assunto temático único que se desdobra de forma variada e crescente em sua obra admirável pela sua força poética.

Portanto, a sua poesia revela as sutilezas do azul, que ultrapassa o ordinário para se fazer o sublime regado de silêncio e vazio. Sua obra transcende o convencional ao nos apresentar as quebras das diferenças e dicotomias como o intercâmbio entre o natural e o cultural, nos levando a uma altura que vai além das estrelas. Tendo uma poesia original, lírica, bela e essencial, suas vozes artísticas costuram um tecido multifacetado utilizando-se para isso de uma semântica própria que repete certas palavras que não atingem as setas retilíneas da mesmice, mas as curvas do mergulhar nas águas profundas do novo. Uma poeta que sabe manejar as palavras como ninguém, trazendo para nós, leitores, um livro diferente e paradoxal que sai do pouso terreno para atingir alturas cada vez mais longínquas como o voo de Ícaro. Uma poesia que requer um olhar agudo do leitor e da crítica especializada.