As brasas no Clube de Leitura da Casa Amarela

Com a falta,abonada por todos, da nossa querida Roseana , por motivo dos mais felizes – o nascimento de sua neta Gabriela, de seu filho André com Dani Keiko – realizamos sábado passado nossa reunião literária sobre o livro As Brasas do húngaro SándorMárai.. (Benvinda, Gabriela! Saúde!).

Hélio e Fernando, membros honorários do grupo, compareceram para o debate, seguido de delicioso almoço, entre antigos e novatos do Clube flutuante: Juan Arias, escritor e esposo de Roseana, os professores Felipe, Adelaide e Maria Clara, o poeta-vereador Chico Peres, seu irmão César e Fátima Alves, Hecto e Flora , Gil , a reaparecida Leila e os estreantes Jonas ,Pollyana e Lenivaldo Ausências mais lembradas: as Ângelas.

Incumbida,como leitora veterana, de subsistir Roseana na condução da reunião, dei o chute inicial de que o livro tratava da formação de uma longa amizade – entre Henrik e Konrad – desde a infância, intermediada pela formação na maturidade de um triângulo amoroso entre dois amigos e a mulher , que uma vez rompido, pela fuga sem explicação de Konrad teria causado consequências irreversíveis na vida dos três: o general Henrik esperaria por 41 anos e alguns dias a volta de seu amigo para apurar uma verdade.

A minha hipótese de que a história nos apresentaria um triângulo amoroso na relação entre os principais personagens gerou imediatamente acalorada divergência de opiniões em relação a este ponto:se teria ou não havido um vetor homossexual entre os amigos no triângulo que viveram.Leila disse não ter imaginado isso nenhuma vez sequer na leitura do livro, que nada havia de concreto, nem de sugestivo em relação a isso. Fernando ponderou que se o próprio Konrad teria apresentado Kriztina ao amigo Henrik, vindo depois a torná-la sua amante isso era sim indício de uma posse indireta do corpo do amigo; Jonas declarou que no começo achou “que eles iriam se pegar”; Felipe fez uma colocação pessoal de que já vivera amizade de um tipo assim bem estreita, de complementariedade, também seguida de afastamento e tinha sido mal-interpretada, sem nada de sexual ter havido, perguntou se as pessoas do grupo vivenciaram algo assim; muitos concordaram que viveram situações sentimentais algo confusas. Chico, César e Felipe leram à propósito trechos do livro que falam da presença de Eros nas amizades, na leitura quando jovem e releitura da teoria de amor de Platão da personagem do general em sua busca de compreender a amizade; mencionei os ensaios de Montaigne sobre a amizade como uma relação onde somos narcisos do outro – do amigo que possuímos;

Juan, conduzindo-nos para um debate propriamente mais literário do livro, lembrou trechos de grande qualidade poética como os da descrição sensível, feita pelo general, da caçada, em que Konrad apontando um cervo por detrás de Henrik teria a oportunidade de matá-lo se quisesse, fingir que sua morte teria sido fruto de um acidente para ficar com sua mulher; e ainda descrição da arrumação detalhada da sala de jantar com”as velas azuis que queimariam até o fim”, na noite em que os dois amigos aos 75 anos afinal tiveram a conversa definitiva depois de 41 anos e dias sem se verem;Juan mencionou, inclusive, que o título da tradução portuguesa para este livro era mais fiel ao original –” Velas que queimam até o fim” , ao que eu observei que As brasas também respeitava o clima do livro de fogo vivo até o fim;

Hector aproveitou a deixa para malhar as traduções em português, que algumas em inglês eram melhores, que ler no original, sim, claro que sim – ponderei que mesmo ruins é melhor haver traduções que não, e que se hoje temos traduções melhores de um Dostoiévski,por exemplo, é porque algumas gerações de tradutores se aventuraram antes, dando-nos a ler autores de línguas pouco conhecidas de nós ; Hélio e Fernando que foram os únicos a trazer poesias húngaras para a roda, reclamaram também – não sabiam se eram tristes os poemas ou as traduções;
(Continuo pensando: sem tradutores, como fazer esta e outras rodas de leitura?)
Em relação à apresentação das personagens, muitos se confessaram irritados com o tamanho da fala do general Henrik em relação às poucas informações que o Capitão Konrad deu sobre si e seus atos entre o dia de sua fuga (ele nega sempre ter fugido)e sua volta. Em relação ao primeiro, Gil resumiu a ópera: ” Fiquei estressada com o homem que não parava de falar , nem deixava o outro responder às perguntas que fazia. Mas depois pensei que ele estava entalado há 41 anos e tal. Então, o melhor é falar. Fala, meu filho”; Alguns consideram que a enorme fala do general feita para o seu antigo amigo sobre o que teria se passado no dia da caçada que foi o mesmo da fuga seria uma espécie de se mostrar afinal vitorioso, de mostrar que ele já sabia de tudo , que não fora enganado. Felipe considerou que o autor forçara um pouco a barra, pois que um personagem militar, não acostumado a pensar sentimentalidades se mostrava filosófico demais naquela conversa. Eu objetei que, no caso, não estávamos diante de um personagem caricato, um militar obtuso, mas de um ser humano que trabalhara durante décadas as suas memórias, diversificando suas reflexões. Lembrei à propósito o livro Memórias, sonhos e reflexões de Carl Jung, livro de cabeceira de Fernanda Montenegro que sua filha tentou várias vezes ler quando moça, só conseguindo quando envelheceu, como disse a sua mãe.

A jovem Pollyana observou que o vômito verbal do general tinha a ver com os diversos silêncios que perpassam a relação entre todos os personagens, desde os principais. Foram sendo lembrados, entre outros, os silêncios de Henrik – que nunca mais falou com a mulher por oito anos, até ela morrer, depois que descobre que sua mulher era amante do amigo –Konrad, que pouco ou nada conta de sua casa ao amigo, Kriztina, que escreve num diário coisas que não consegue dizer ao marido; aos secundários: Nini, a ama de 91 que sempre sorri, sem nunca ter mencionado o nome de quem a engravidou para o pai que a expulsou de casa, a mãe estrangeira de Henrik que gostava de música e chorou durante uma valsa nos braços do Rei sem revelar nunca o motivo;
Acusado de covarde” por Kriztina (por não ter matado o general para fugir com ela? ) de fujão por Henrik, o personagem de Konrad, foi avaliado pela maioria das pessoas de nosso grupo como uma pessoa leal, que renuncia à amante como uma prova de amor ao amigo; outros julgaram-no um invejoso sobretudo que muda-se por não aguentar mais sentir-se inferior;

Adelaide e sua filha Izabella associaram ainda as diferenças e tensões entre os personagens como um espelho da vitória da Hungria sobre a Polônia à época em que se passa o história do livro; Konrad de ascendência polonesa , primo de Chopin e amante das artes sentir-se-ia também humilhado ,meio estrangeiro e empobrecido. Abandona o exército húngaro e nacionaliza-se como inglês quando some;

Com Juan apontando que a riqueza deste livro são justamente as infinitas leituras que ele proporciona a quem o abra e leia ou releia e com Felipe lendo um trecho de Miguel Souza Tavares sobre a importância do amor mais que tudo entre os homens “aquilo que nos faz acordar tristes ou alegres de viver”, passamos às contentezas mais concretas da mesa, já muito bem exercitados espiritualmente.